Veronica Oliveira: Nossas conquistas ofendem a elite

Published: April 9, 2021, 11 p.m.

b'Faxineira e palestrante, ela fala sobre os preconceitos da profissão no canal Faxina Boa: "Eu não sou burra porque estou lavando privada"\\n \\n Veronica Oliveira n\\xe3o cresceu com uma vida dif\\xedcil, mas, em 2015, a empresa de telemarketing onde trabalhava fechou e ela se viu desempregada com dois filhos dividindo espa\\xe7o com outras 40 pessoas num corti\\xe7o. Foi a\\xed que ela descobriu sua voca\\xe7\\xe3o na faxina e conquistou os clientes na internet com montagens cheias de refer\\xeancias pop, parodiando cartazes de filmes como Kill Bill. Mas n\\xe3o demorou para que ela entendesse que a faxina n\\xe3o era vista como um trabalho como qualquer outro. "As pessoas olham com pena e, quando percebem que eu tenho conhecimento, que falo ingl\\xeas, um pouco de japon\\xeas, dizem: \'Se voc\\xea \\xe9 inteligente por que trabalha com faxina?\', conta.\\n[VIDEO=https://www.youtube.com/embed/2nkTbKjk2v0; CREDITS=; LEGEND=; IMAGE=https://img.youtube.com/vi/2nkTbKjk2v0/sddefault.jpg]\\nPara falar sobre os preconceitos e estere\\xf3tipos que cercam a profiss\\xe3o \\u2013 a sua e de outros prestadores de servi\\xe7o \\u2013, ela criou o canal no Instagram Faxina Boa.\\xa0\\u201cO cara n\\xe3o \\xe9 burro porque est\\xe1 dirigindo o carro por aplicativo, eu n\\xe3o sou burra porque estou lavando privada. A pessoa que est\\xe1 fazendo qualquer trampo, se voc\\xea precisa dele, n\\xe3o \\xe9 inferior nem n\\xe3o tem capacidade de fazer outra coisa\\u201d, diz. Hoje ela tem mais de 300 mil seguidores,\\xa0\\xe9 palestrante, criadora de conte\\xfado, comentarista na televis\\xe3o e autora do livro "Minha vida passada a limpo: Eu n\\xe3o terminei como faxineira, eu comecei".\\xa0"\\xc0 medida que eu fui conquistando coisas, percebi que as pessoas mais privilegiadas se sentiam ofendidas. Eu escutava muito: \'Eu gostava de voc\\xea antes\'. Antes do qu\\xea? Quando eu estava muito ferrada, \\xe9 isso?\\xa0Qual \\xe9 o problema da elite que n\\xe3o consegue ver uma pessoa progredir?\\u201d\\nNo papo com o Trip FM, Veronica fala sobre a sua trajet\\xf3ria, como \\xe9 ser m\\xe3e de uma crian\\xe7a com espectro autista e a necessidade de reformular a vis\\xe3o da elite brasileira sobre os trabalhadores essenciais. Ou\\xe7a o programa no Spotify, no play abaixo ou leia um trecho da entrevista a seguir.\\n[AUDIO=https://p.audio.uol.com.br/trip/2021/4/TripFM_VeronicaFaxinaBoa_Podcast.mp3; IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2021/04/6070a638bb365/veronica-oliveira-facina-boa-trip-fm-mh2.jpg]\\nLEIA TAMB\\xc9M: A influ\\xeancia do sono na sa\\xfade mental\\xa0\\nTrip. Eu fiquei intrigado com a sua biografia. Me conta um pouco da sua origem, sua inf\\xe2ncia? Voc\\xea era pobre, era rica, era remediada? Como era sua vida?\\nVeronica Oliveira. At\\xe9 o come\\xe7o da vida adulta, se eu paro para pensar, falar que em remediado \\xe9 at\\xe9 maldade com meus pais. N\\xf3s \\xe9ramos cinco e mor\\xe1vamos na regi\\xe3o da Vila Buarque [em S\\xe3o Paulo], eu estudei em um col\\xe9gio tradicional de Higien\\xf3polis. Agora que eu sou m\\xe3e e sei o que \\xe9 bancar as criaturinhas, eu fico imaginando que sustentar cinco filhos e dar as oportunidades que a gente teve n\\xe3o \\xe9 para qualquer um. Ent\\xe3o n\\xe3o d\\xe1 nem pra falar remediado. Nunca faltou nada, era uma uma vida de classe m\\xe9dia muito tranquila. Quando eu engravidei, aos 17 anos, no final da minha da minha adolesc\\xeancia, foi o mesmo per\\xedodo em que os meus pais se divorciaram e cada um foi para seu canto. A gente acabou indo morar na periferia e fui conhecer uma outra realidade. Ao mesmo tempo a gente n\\xe3o estava, de jeito nenhum, passando nenhum tipo de perrengue, ficamos at\\xe9 surpresos com tanta coisa que dava para fazer porque o custo de vida era bem menor.\\nQuando eu resolvi morar sozinha, e as coisas foram dependendo s\\xf3 de mim, j\\xe1 estava velha e n\\xe3o tinha estudado. E eu comecei a ver que era muito mais complicado. Ent\\xe3o eu comecei a trabalhar j\\xe1 tinha 28 anos de idade. A\\xed a pessoa j\\xe1 t\\xe1 quase com 30 anos, n\\xe3o tem faculdade, n\\xe3o sabe nada, nunca trabalhou, ent\\xe3o fui para o call center e telemarketing. Ainda assim eu consegui crescer dentro das empresas em que eu trabalhei, ganhava super bem. Eu j\\xe1 estava com dois filhos, pagando aluguel, tinha as minhas responsabilidades, e a empresa declarou fal\\xeancia. Foi uma loucura. A gente n\\xe3o sabia quando ia receber, n\\xe3o tinha nenhum direito trabalhista, foram tr\\xeas anos na justi\\xe7a at\\xe9 conseguir isso.\\xa0\\nEu gosto muito quando tenho a oportunidade de contar minha hist\\xf3ria para as pessoas, de frisar que \\xe0s vezes a gente acha que est\\xe1 com a vida garantida \\u2013 porque nasceu numa fam\\xedlia de classe m\\xe9dia, porque estudou na escola tal, porque teve isso, teve aquilo \\u2013, mas a gente n\\xe3o tem garantia de nada. A vida pode passar rasteira na gente. A gente n\\xe3o sabe o que vai acontecer e tem que estar super preparado para aguentar a porrada no futuro. Eu descobri que a vida adulta era muito mais dif\\xedcil.\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2021/04/6070a69476c9f/veronica-oliveira-facina-boa-trip-fm-mq.jpg; CREDITS=Arquivo pessoal; LEGEND=Veronica trabalhava com telemarketing, mas em 2015 a empresa fechou e ela ficou desempregada, com dois filhos, dividindo espa\\xe7o com 40 pessoas num corti\\xe7o; ALT_TEXT=Veronica Oliveira Filho Sorrindo Deitados Rede]\\nLogo voc\\xea come\\xe7ou a ganhar uma grana boa com a hist\\xf3ria da faxina. Deu para melhorar de grana mais r\\xe1pido que no telemarketing?\\xa0Eu entrei em outro call center, onde eu ganhava um sal\\xe1rio m\\xednimo, pagava de plano de sa\\xfade e no final do m\\xeas recebia 680 reais. O aluguel do quartinho onde a gente morava era 500 reais. Ent\\xe3o que passar o m\\xeas com uma m\\xe9dia de 80 reais, para rem\\xe9dio, para produto de limpeza, para comida, para tudo. A gente n\\xe3o tinha certeza do dia que ia comer e do dia que n\\xe3o ia. Era uma coisa muito absurda. Na hora em que eu vi que fazendo faxina eu recebia o dinheiro na hora todos os dias\\u2026 Primeiro que eu cometi todos os erros poss\\xedveis porque eu n\\xe3o sabia administrar. Mas com o tempo fui aprendendo e fui lidando com isso.\\nEu at\\xe9 brinco que a primeira coisa que eu comprei com a grana da faxina foi um celular bom, o que gerou tamb\\xe9m uma baita discuss\\xe3o quando eu chegava para trabalhar. Porque a\\xed as pessoas falavam: \\u201cNossa, voc\\xea \\xe9 faxineira e tem esse celular?\\u201d. Era insuport\\xe1vel. Eu sou neta de empregada dom\\xe9stica, a minha av\\xf3 foi empregada na regi\\xe3o dos Jardins por 33 anos, de uma fam\\xedlia que tem seis sobrenomes, aquela coisa toda. E eu ouvia dizerem que ela era uma parte importante da fam\\xedlia, mas ela comia na \\xe1rea de servi\\xe7o, a comida dela era outra. Qual a parte importante da fam\\xedlia que ela \\xe9? Nem a mesma comida ela come. Eu s\\xf3 fui me dar conta disso quando eu j\\xe1 estava grande, porque eu frequentava a casa e visitava minha av\\xf3.\\nQuando eu passei a trabalhar como faxineira, eu pensei: "Bom, isso ficou para tr\\xe1s, coisa dos anos 90". E eu vi que as pessoas n\\xe3o entravam no mesmo elevador que eu, me davam comida velha, pegavam coisas que literalmente eram lixo e falavam: \\u201cOlha, separei umas coisinhas para voc\\xea\\u201d. Gente, \\xe9 a mesma coisa, n\\xe3o mudou nada! As pessoas olham com pena e, quando percebem que eu tenho conhecimento, que falo ingl\\xeas, um pouco de japon\\xeas, dizem: \\u201cSe voc\\xea \\xe9 inteligente por que trabalha com faxina?\\u201d.\\nA\\xed eu resolvi usar a internet para falar sobre isso, porque as pessoas n\\xe3o precisam julgar nem colocar esses estere\\xf3tipos rid\\xedculos. Eu n\\xe3o falo s\\xf3 da limpeza, qualquer presta\\xe7\\xe3o de servi\\xe7o! O cara que est\\xe1 dirigindo o carro por aplicativo n\\xe3o \\xe9 burro porque ele est\\xe1 fazendo isso, eu n\\xe3o sou burra porque estou lavando privada, e a pessoa que est\\xe1 fazendo qualquer trampo, se voc\\xea precisa dele, n\\xe3o \\xe9 inferior nem n\\xe3o tem capacidade de fazer outra coisa. Se todo mundo quiser ser presidente da empresa, quem vai trabalhar nela? N\\xe3o d\\xe1 para todo mundo ser o top do top.\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2021/04/6070a6d32d7d7/veronica-oliveira-facina-boa-trip-fm-mq2.jpg; CREDITS=Arquivo pessoal; LEGEND=Em 2020 lan\\xe7ou o livro "Minha vida passada a limpo: Eu n\\xe3o terminei como faxineira, eu comecei", no qual re\\xfane hist\\xf3rias e conselhos sobre sua vida de faxineira; ALT_TEXT=]\\nLEIA TAMB\\xc9M: "A elite brasileira precisa de uma faxina", diz Veronica Oliveira\\nNo ano passado, o nosso dign\\xedssimo ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que o d\\xf3lar alto era bom para todo mundo porque \\u201ca empregada dom\\xe9stica estava indo para a Disney fazendo uma festa danada\\u201d. Obviamente h\\xe1 esse preconceito, uma coisa de "tem gente que pode", "tem gente que n\\xe3o pode", que nega a possibilidade de ascens\\xe3o, de mobilidade social. Voc\\xea, que frequenta as quebradas dos apartamentos de Higien\\xf3polis, do Jardim Europa, acha que esse povo est\\xe1 piorando ou melhorando? A pandemia est\\xe1 ajudando a perceberem a exist\\xeancia do outro ou os caras s\\xf3 est\\xe3o aumentando o tamanho do muro e dando uma reblindada no carro? O Paulo Guedes conseguiu fazer eu ter uma vontade doida de ir para a Disney. Sempre tive vontade de conhecer todos os lugares, nunca a Disney, mas agora eu quero, s\\xf3 por causa dele. E a sua fala me lembra duas not\\xedcias recentes: uma sobre a quest\\xe3o da inseguran\\xe7a alimentar da popula\\xe7\\xe3o brasileira, que agora voltou a atingir milh\\xf5es de pessoas, um patamar que n\\xe3o alcan\\xe7\\xe1vamos h\\xe1 17 anos; e a not\\xedcia de que entraram n\\xe3o me lembro quantos bilion\\xe1rios brasileiros da lista da Forbes. E a\\xed eu fico pensando, olha como as coisas s\\xe3o!\\nLevando isso pra dentro da minha realidade, eu fui atender uma cliente em um condom\\xednio de luxo no Itaim Bibi e ouvi uma conversa entre dois moradores no elevador dizendo que o filho do zelador tinha comprado um carro igual ao de um deles. A\\xed ele falou assim: \\u201cComo \\xe9 que eu vou andar com o mesmo carro?\\u201d. Eu me segurei muito pra n\\xe3o falar: "Voc\\xea no seu e ele no dele". \\xc0 medida que eu fui conquistando coisas, percebi que as pessoas mais privilegiadas se sentiam ofendidas. Eu escutava muito: \\u201cEu gostava de voc\\xea antes\\u201d. Antes do qu\\xea? Antes, quando eu estava muito ferrada, \\xe9 isso? Voc\\xea n\\xe3o pode trabalhar e progredir, conquistar coisas. Quando eu comprei um carro, cheguei para fazer uma faxina, a mo\\xe7a me recebeu e falou: \\u201cEu n\\xe3o quero voc\\xea na minha casa porque seu carro \\xe9 melhor que o meu, voc\\xea n\\xe3o precisa trabalhar\\u201d.\\nAcho que se eu estivesse na periferia, reclamando que eu estou com fome, as pessoas se sentiriam confort\\xe1veis. Isso \\xe9 muito horr\\xedvel. Eu penso: qual \\xe9 o problema da gente? Qual \\xe9 o problema da elite, que n\\xe3o consegue ver uma pessoa progredir? E eu odeio o papo de meritocracia. Eu frequento um bocado de eventos e sempre converso com quem est\\xe1 limpando os lugares. Eu vou arrotar um discurso meritocr\\xe1tico na frente de uma pessoa que est\\xe1 trabalhando das 8 da manh\\xe3 \\xe0s 10 da noite para ganhar 45 reais? N\\xe3o d\\xe1!\\nO que eu estou vivendo n\\xe3o \\xe9 a regra, n\\xe3o vai ser a regra. Ent\\xe3o o que eu posso fazer \\xe9 mostrar para essas pessoas que isso est\\xe1 errado, que ela est\\xe1 sendo explorada, que o trabalho dela tem um baita de um valor! Porque se ela n\\xe3o tivesse limpado aquele evento, ele n\\xe3o estava acontecendo, ia ser uma zona, com milhares de pessoas num pavilh\\xe3o e sem ningu\\xe9m pra limpar. Quando as pessoas come\\xe7am a ter essa no\\xe7\\xe3o, eu entendo a import\\xe2ncia do meu trabalho nas redes sociais, mas \\xe9 dif\\xedcil para caramba!\\xa0\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2021/04/6070a714e76ce/veronica-oliveira-facina-boa-trip-fm-mh.jpg; CREDITS=Divulga\\xe7\\xe3o; LEGEND=Veronica Oliveira, Stevens Rehen e a neurocientista N\\xe1talia Mota discutem como o sono nos ajuda a lidar com eventos traum\\xe1ticos como a pandemia e seus efeitos em nossa sa\\xfade mental; ALT_TEXT=Veronica Oliveira Stevens Rehen N\\xe1talia Mota ]'