Padre Julio Lancellotti: Existe uma desumanizacao acelerada

Published: Dec. 11, 2020, 11 p.m.

b'Importante figura na luta pelos direitos das populações mais vulneráveis, ele fala sobre as ameaças que recebeu e a violência na Cracolândia\\n \\n Embora seja do grupo de risco da Covid-19, Padre J\\xfalio Lancellotti,\\xa0prestes a completar 72 anos, tem enfrentado a pandemia na linha de frente. Atuando diariamente no socorro da popula\\xe7\\xe3o mais vulner\\xe1vel, ele leva alimentos, roupas, itens de higiene e luta por acomoda\\xe7\\xe3o para as pessoas em situa\\xe7\\xe3o de rua. P\\xe1roco na Igreja de S\\xe3o Miguel Arcanjo, na Mooca, e \\xe0 frente da Pastoral da Rua em S\\xe3o Paulo, ele \\xe9 tamb\\xe9m um dos fundadores da Casa Vida, que acolhe crian\\xe7as soropositivas, e j\\xe1 atuou dentro de penitenci\\xe1rias e da antiga Febem (hoje Funda\\xe7\\xe3o Casa). "O sistema neoliberal tem uma l\\xf3gica, e a l\\xf3gica \\xe9 do descarte", diz o padre, te\\xf3logo e pedagogo que luta pelos direitos e por dignidade para esses exclu\\xeddos, ou "descartados", como prefere chamar.\\n[VIDEO=https://www.youtube.com/embed/83keaxIg6HQ; CREDITS=; LEGEND=; IMAGE=https://img.youtube.com/vi/83keaxIg6HQ/sddefault.jpg]\\nEssa batalha chegou a transform\\xe1-lo em alvo de difama\\xe7\\xf5es e ataques nas redes sociais e nas ruas, e em setembro ele registrou um boletim de ocorr\\xeancia ap\\xf3s ser amea\\xe7ado. Mas a viol\\xeancia n\\xe3o o intimida. Padre J\\xfalio j\\xe1 resistiu em reintegra\\xe7\\xf5es de posse, levou bomba de g\\xe1s em manifesta\\xe7\\xf5es de rua e denuncia com frequ\\xeancia a viol\\xeancia policial. "Esse medo das amea\\xe7as n\\xe3o pode me acovardar. Eu seria falso se assumisse o sil\\xeancio ou me calasse diante da homofobia, da transfobia, do racismo, do \\xf3dio aos pobres, de tortura a presos e a moradores de rua."\\xa0\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/12/5fd3af559e105/padre-julio-lancelloti-trip-fm-mh2.jpg; CREDITS=Mario Ladeira; LEGEND=Embora seja do grupo de risco da COVID-19, Padre J\\xfalio Lancellotti,\\xa0prestes a completar 72 anos, tem enfrentado a pandemia na linha de frente]\\nCom 35 anos de experi\\xeancia lidando com a car\\xeancia e com as desigualdades, ele compartilha a Trip sua vis\\xe3o sobre os caminhos para amparar a popula\\xe7\\xe3o de rua, os egressos do sistema carcer\\xe1rio e a Cracol\\xe2ndia. "Vemos a Cracol\\xe2ndia n\\xe3o pela depend\\xeancia qu\\xedmica, mas pela quest\\xe3o da classe social da qual eles s\\xe3o. Se tivessem um lugar para morar, n\\xe3o seria problema. O problema \\xe9 que eles est\\xe3o expostos e s\\xe3o vis\\xedveis."\\xa0\\nTrip. Padre, o senhor desenvolve um trabalho h\\xe1 mais de 30 anos com a popula\\xe7\\xe3o de rua da cidade de S\\xe3o Paulo. Queria que voc\\xea, que conhece de perto, falasse de onde v\\xeam e quem s\\xe3o as pessoas em situa\\xe7\\xe3o de rua em S\\xe3o Paulo.\\nPadre J\\xfalio Lancelotti. A popula\\xe7\\xe3o de rua \\xe9 muito heterog\\xeanea, n\\xe3o d\\xe1 para dizer que tem um perfil s\\xf3. Agora durante a pandemia, e desde do golpe que derrubou a ex-presidente Dilma, a crise fez aumentar muito o n\\xfamero de pessoas na rua. Nenhuma causa \\xe9 \\xfanica, n\\xe3o \\xe9 dizer "\\xe9 s\\xf3 o desemprego" porque no Brasil tem 13 milh\\xf5es de desempregados e n\\xe3o est\\xe3o todos na rua. \\xc9 um arranjo, uma quest\\xe3o pessoal de perdas sucessivas que n\\xe3o s\\xe3o trabalhadas de maneira que sustentem essa pessoa. Tem muitos jovens na rua, muitos idosos. Aumenta o n\\xfamero de mulheres com crian\\xe7as. Gosto muito da express\\xe3o que o Papa Francisco usa, desde a Exorta\\xe7\\xe3o Apost\\xf3lica Evangelii Gaudium, dos "descartados". O sistema neoliberal tem uma l\\xf3gica, e \\xe9 a l\\xf3gica do descarte. Quando voc\\xea fala "exclu\\xeddo", voc\\xea vai descobrir que existem pol\\xedticas de inclus\\xe3o, mas, quando se fala "descartado", n\\xe3o existe pol\\xedtica de "encarte". O que se faz com o copo descart\\xe1vel? O que se faz com um prato descart\\xe1vel? \\xc9 lixo. Ent\\xe3o essas pessoas s\\xe3o completamente insignificantes, indesej\\xe1veis e de certa forma o sistema n\\xe3o as quer. Elas fazem parte de uma l\\xf3gica perversa que as joga no lixo. A pol\\xedtica p\\xfablica \\xe9 o que sobra para os descartados. Acho que seria muito escandaloso eles morrerem todos de uma vez, ent\\xe3o tem pol\\xedtica p\\xfablica para mant\\xea-los com um resto de vida.\\nNos \\xfaltimos anos houve uma evolu\\xe7\\xe3o nos movimentos feministas, antirracistas, das quest\\xf5es de g\\xeanero e LGBTQ+. Mas tem um universo que parece esquecido, que \\xe9 o dos egressos do sistema carcer\\xe1rio. Essa popula\\xe7\\xe3o \\xe9 gigantesca, s\\xf3 cresce, e, quando um sujeito sai da cadeia, ele sai sem nada. Como \\xe9 para esse cidad\\xe3o que paga sua pena voltar para a rua sem saber o que fazer e para onde ir? Eu convivi muito com os presos e as presas. Guardo muito na minha mem\\xf3ria a conviv\\xeancia com as mulheres presas. Fiquei muitos anos acompanhando, desde que elas come\\xe7aram a entrar naquela penitenci\\xe1ria feminina do Tatuap\\xe9, at\\xe9 quando a penitenci\\xe1ria foi extinta. Sempre no dia de Natal eu estava com elas, na P\\xe1scoa, na Semana Santa, o ano inteiro eu celebrava a missa com essas mulheres presas. Esse dado que voc\\xea levanta \\xe9 um dado muito importante, porque nenhum desses grupos se preocupa com as mulheres presas, com as mulheres trans presas, com os gays presos, com o grupo LGBT que est\\xe1 preso, com os negros, que s\\xe3o a maioria dos presos. Essas bandeiras desfraldam dos espa\\xe7os de liberdade. O movimento que tem dentro dos pres\\xeddios s\\xe3o os chamados de PCC, dos comandos, que dominam o sistema carcer\\xe1rio. Tanto que voc\\xea v\\xea o pouco que o Estado ou os governos mexem no sistema carcer\\xe1rio, porque \\xe9 complicado e porque vai desnudar uma face b\\xe1rbara da corrup\\xe7\\xe3o e do crime organizado. Agora, um dos \\xfaltimos Censo apontou \\u2013 e at\\xe9 \\xe9 um dado delicado de dizer porque pode aumentar o preconceito \\u2013 que 42% da popula\\xe7\\xe3o de rua passou pelo sistema carcer\\xe1rio. E eles trazem para a rua esse mundo. \\xc0s vezes eu vejo alguns desses irm\\xe3os com quem eu convivo e que est\\xe3o em situa\\xe7\\xe3o de rua, e a impress\\xe3o que eu tenho \\xe9 que eles ainda est\\xe3o dentro da pris\\xe3o, s\\xf3 que o p\\xe1tio agora ficou maior. Todos eles t\\xeam experi\\xeancia de tortura, de viol\\xeancia, de maus tratos, do exerc\\xedcio do poder. Essa estrutura da rua \\xe9 muito marcada pela estrutura carcer\\xe1ria, e, por incr\\xedvel que pare\\xe7a, os espa\\xe7os de acolhida e de conviv\\xeancia para a popula\\xe7\\xe3o de rua lembram muito essa estrutura para eles.\\n[QUOTE=1154]\\nPorque eles n\\xe3o t\\xeam autonomia, t\\xeam hor\\xe1rio para entrar, para sair, para comer, para dormir, hor\\xe1rio da televis\\xe3o. Alguns dizem que certos centros de acolhida parecem "semiliberdade\'\'. E uma das quest\\xf5es s\\xe9rias com a popula\\xe7\\xe3o de rua \\xe9 que ela \\xe9 tutelada: sempre as chamadas pol\\xedticas p\\xfablicas s\\xe3o de tutela, elas n\\xe3o s\\xe3o geradoras de autonomia. Mesmo porque a autonomia, no mundo em que a gente vive, \\xe9 muito perigosa. Autonomia de pensamento, autonomia de sentimento, autonomia de movimento. Ent\\xe3o a popula\\xe7\\xe3o em situa\\xe7\\xe3o de rua \\xe9 uma popula\\xe7\\xe3o extremamente tutelada, e essa tutela infantiliza, embrutece e desumaniza.\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/12/5fd3afa79968e/padre-julio-lancelloti-trip-fm-mh1.jpg; CREDITS=Mario Ladeira; LEGEND=P\\xe1roco na Igreja de S\\xe3o Miguel Arcanjo, na Mooca, e \\xe0 frente da Pastoral da Rua em S\\xe3o Paulo ele \\xe9 tamb\\xe9m um dos fundadores da Casa Vida, que acolhe crian\\xe7as soropositivas, e j\\xe1 atuou dentro de penitenci\\xe1rias e da antiga Febem (hoje Funda\\xe7\\xe3o Casa).]\\nLEIA TAMB\\xc9M:\\xa0O amor-pr\\xf3prio entre mulheres na Cracol\\xe2ndia\\nA depend\\xeancia qu\\xedmica, em especial do crack, \\xe9 um problema muito marcante e que atinge muitas pessoas nas ruas. Para voc\\xea, qual seria o caminho para resolver essa quest\\xe3o, para al\\xe9m do trabalho que voc\\xea j\\xe1 faz de acolhimento e escuta dessas pessoas? Eu acho que n\\xf3s n\\xe3o sabemos lidar com o dependente qu\\xedmico em geral, porque n\\xe3o existem dependentes qu\\xedmicos s\\xf3 na rua. Seguramente no condom\\xednio de todos que est\\xe3o nos lendo tem dependentes qu\\xedmicos, e tem os dependentes de drogas l\\xedcitas e de drogas il\\xedcitas. A quest\\xe3o n\\xe3o \\xe9 a depend\\xeancia qu\\xedmica, \\xe9 a quest\\xe3o social dessa pessoa. Quem tem uma depend\\xeancia qu\\xedmica e mora numa cobertura n\\xe3o tem problema nenhum. Ele pode ter problemas com os cond\\xf4minos, com o s\\xedndico, alguma coisa assim. Mas voc\\xea acha que em S\\xe3o Paulo s\\xf3 se usa crack na Cracol\\xe2ndia? Ser\\xe1 que s\\xe3o s\\xf3 eles? Quem \\xe9 que usa coca\\xedna em S\\xe3o Paulo, s\\xe3o s\\xf3 os moradores de rua? Quem usa hero\\xedna? E quem usa Diazepam e todos esses rem\\xe9dios que muita gente usa para poder dormir? Isso sem falar do consumo de \\xe1lcool. Eu digo: tem a Cracol\\xe2ndia, mas tem a Pingol\\xe2ndia, e a Cervejol\\xe2ndia, a Whiskil\\xe2ndia. S\\xf3 que a \\xfanica que todo mundo v\\xea \\xe9 a Cracol\\xe2ndia. Ali se v\\xea, n\\xe3o pela quest\\xe3o da depend\\xeancia qu\\xedmica, mas pela quest\\xe3o da classe social a qual eles pertencem. Se eles n\\xe3o fossem pobres e miser\\xe1veis, se tivessem um lugar para morar, n\\xe3o seria problema. O problema \\xe9 que eles est\\xe3o expostos e s\\xe3o vis\\xedveis. De certa forma todos n\\xf3s temos alguma depend\\xeancia qu\\xedmica.\\nLEIA TAMB\\xc9M:\\xa0O rapper Dexter divide o que aprendeu com seu p\\xfablico e com outros ex-presidi\\xe1rios\\nVoc\\xea defendeu muito a estrat\\xe9gia de se utilizar hot\\xe9is que ficaram ociosos durante a pandemia para alojar a popula\\xe7\\xe3o de rua neste momento, uma medida que foi tomada em algumas cidades na Europa. Com a sua experi\\xeancia, depois do afeto, de acolher e ouvir essas pessoas, por onde come\\xe7ar a resolu\\xe7\\xe3o desse problema da popula\\xe7\\xe3o em situa\\xe7\\xe3o de rua? Seria por providenciar uma habita\\xe7\\xe3o decente para essas pessoas? Eu acredito que sim. Mas veja, n\\xf3s precisamos ter claro que n\\xf3s temos que superar a desigualdade. Come\\xe7a por uma supera\\xe7\\xe3o da desigualdade, da opress\\xe3o, da tirania, da corrup\\xe7\\xe3o, do crime organizado. S\\xe3o v\\xe1rias as quest\\xf5es que se interrelacionam para que a vida seja humanizada.\\n[QUOTE=1155]\\nPorque a revers\\xe3o hist\\xf3rica n\\xe3o \\xe9 feita num epis\\xf3dio. N\\xf3s chegamos onde chegamos porque n\\xf3s fomos acumulando uma forma de ser, uma forma de agir, uma forma de descartar, e a\\xed \\xe9 uma coisa que me chama muito a aten\\xe7\\xe3o: a pessoa que \\xe9 tratada com desumanidade continuamente e repetidamente, ela vai acabar se desumanizando tamb\\xe9m. Isso tamb\\xe9m entra nela. Por exemplo, a imprensa me cobrou muito sobre o arrast\\xe3o que aconteceu l\\xe1 na Cracol\\xe2ndia na ter\\xe7a-feira, dia 8 de dezembro. S\\xf3 que toda a m\\xeddia mostrou o \\xfaltimo cap\\xedtulo da novela, sem mostrar como \\xe9 que aquilo come\\xe7ou e por que chegou naquilo. A gente convive com essas pessoas, e \\xe9 muito doloroso ver isso. Eu disse, e foi dif\\xedcil as pessoas compreenderem, que a viol\\xeancia gera viol\\xeancia. Isso a minha tatarav\\xf3 j\\xe1 dizia. As pessoas que s\\xe3o tratadas com viol\\xeancia, o repert\\xf3rio delas \\xe9 responder com viol\\xeancia. Se eu te maltratar, voc\\xea est\\xe1 programado mentalmente para me responder agressivamente. Se voc\\xea me maltratar, eu estou programado emocionalmente pra te responder duro tamb\\xe9m. Dificilmente uma pessoa que \\xe9 maltratada responde para o agressor de uma maneira suave: "Calma, n\\xe3o \\xe9 bem assim", "veja bem". Ent\\xe3o se um morador de rua me trata mal, eu imediatamente o trato mal tamb\\xe9m. Agora, quando eu o trato mal e ele me trata mal de volta, eu o criminalizo. Mas ele est\\xe1 me respondendo no diapas\\xe3o, na pauta que eu dei para ele. O povo que est\\xe1 na rua sofre diariamente humilha\\xe7\\xe3o, escracho, falta de acesso \\xe0 \\xe1gua pot\\xe1vel, \\xe0 alimenta\\xe7\\xe3o, \\xe0 um lugar adequado para urinar, n\\xe3o tem um lugar para defecar, a roupa pode estar fedendo, ele n\\xe3o tem outra roupa pra trocar. Ele mesmo em alguns momentos se sente desagrad\\xe1vel, a boca n\\xe3o sente mais o sabor, n\\xe3o consegue dormir, \\xe9 uma perturba\\xe7\\xe3o cont\\xednua. Como \\xe9 que essa pessoa vai responder positivamente? Eu falo muito isso: eles n\\xe3o s\\xe3o nem anjos nem dem\\xf4nios, s\\xe3o pessoas. Imagina voc\\xea ou eu vivermos uma semana nessas condi\\xe7\\xf5es? Uma semana esperando algu\\xe9m te trazer comida, sem saber se v\\xe3o trazer ou n\\xe3o? Uma semana comendo s\\xf3 aquilo que te d\\xe3o, sem poder escolher? Tendo que dormir na cal\\xe7ada? Eu acredito que, com tanta repress\\xe3o, eles reagem pouco.\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/12/5fd3afdda6321/padre-julio-lancelloti-trip-fm-mh4.jpg; CREDITS=Mariana Pekin; LEGEND=Mediados por Milly Lacombe, Sebasti\\xe3o Oliveira, da Associa\\xe7ao Miratus de Badminton, o padre e militante dos direitos humanos J\\xfalio Lancellotti, e a cientista pol\\xedtica Ilona Szab\\xf3 conversaram sobre seguran\\xe7a p\\xfablica]\\nEu entrevistei aqui o Celso Athayde, uma lideran\\xe7a importante das periferias, criador da CUFA, e ele disse: "Por alguma raz\\xe3o o povo pobre ainda recebe passivamente a situa\\xe7\\xe3o que lhe \\xe9 imposta. Imagine se esse povo come\\xe7a a se organizar para atacar e para retribuir". Por que voc\\xea acha que isso n\\xe3o acontece? Porque o povo pobre tamb\\xe9m \\xe9 ideologizado pela ideologia dominante. Eles assistem aos meios de comunica\\xe7\\xe3o dominantes, eles recebem a estrutura dominante. Eu gosto muito de um pensamento da Simone de Beauvoir que diz: "Os opressores n\\xe3o teriam tanto poder se n\\xe3o tivessem tantos c\\xfamplices entre os oprimidos". \\xc9 aquilo que o nosso Paulo Freire, t\\xe3o maltratado no Brasil dessa atual pol\\xedtica, diz: "A cabe\\xe7a do oprimido \\xe9 o quarto de h\\xf3spedes do opressor". Ent\\xe3o a nossa sociedade funciona ideologicamente para que o negro pense com a cabe\\xe7a do branco, a mulher pense com a cabe\\xe7a do homem, a crian\\xe7a com a cabe\\xe7a do adulto, o \\xedndio com a cabe\\xe7a do chamado civilizado. E o pobre, muitas vezes, ele pensa com a cabe\\xe7a do rico. Por isso que a educa\\xe7\\xe3o no Brasil n\\xe3o \\xe9 libertadora, ela \\xe9 uma educa\\xe7\\xe3o banc\\xe1ria, como dizia o Paulo Freire, onde se coloca na cabe\\xe7a das pessoas a ideologia dominante. Voc\\xea v\\xea, os pobres votam no Bolsonaro. Aqui em S\\xe3o Paulo, votam em quem? O que viram no Boulos? "Esse \\xe9 um cara perigoso. Ele vai invadir meu domic\\xedlio". Isso o povo todo pensa. Se voc\\xea perguntar a um motorista de t\\xe1xi, ou perguntar na feira, para o pov\\xe3o que est\\xe1 l\\xe1: "A cor do menino qual \\xe9?". Todos v\\xe3o dizer: "\\xc9 azul". E a cor da menina? Cor-de-rosa. O que \\xe9 o vermelho? Comunista. O que \\xe9 o comunista? Perigoso. A nossa maneira de pensar hoje \\xe9 muito empobrecida. N\\xf3s nunca vivemos um momento de tanto empobrecimento do pensamento como n\\xf3s estamos vivendo agora.\\nQuando foi homenageado pelo Trip Transformadores em 2018, voc\\xea disse que se sente sempre um fracassado, e quando n\\xe3o for um fracassado, \\xe9 porque aderiu ao sistema. E disse ainda: "Eu n\\xe3o vou ver a mudan\\xe7a pela qual eu luto, porque essa luta \\xe9 uma luta hist\\xf3rica". Depois de 35 anos batalhando no dia a dia, voc\\xea fala numa revers\\xe3o hist\\xf3rica. Voc\\xea acha que n\\xf3s estamos piorando como sociedade? Andamos para tr\\xe1s de uma maneira geral?\\xa0Eu acredito que nada \\xe9 monol\\xedtico, n\\xf3s temos luz e trevas. Talvez estejamos vivendo um momento em que as trevas, ou o que n\\xf3s chamamos de trevas, porque eles tamb\\xe9m nos acham trevas, esteja muito forte. A gente tamb\\xe9m seria muito pretensioso de achar "eu sou a luz". Mas n\\xf3s temos que ter instrumentos de an\\xe1lise. Uma objetividade \\xe9 a qualidade de vida: o nosso povo se alimenta adequadamente? Se alimenta o necess\\xe1rio? O nosso povo tem um lugar decente para dormir? O trabalho que o nosso povo faz \\xe9 remunerado adequadamente? As desigualdades entre o nosso povo s\\xe3o em que n\\xedvel, de um para trinta, de um para tr\\xeas mil, ou de um para trezentos mil? Existem dados objetivos, a pr\\xf3pria ONU tem os indicadores de desenvolvimento humano. Por exemplo, se temos acesso \\xe0 \\xe1gua pot\\xe1vel, ao esgoto, \\xe0 alimenta\\xe7\\xe3o, \\xe0 informa\\xe7\\xe3o verdadeira e n\\xe3o manipulada, acesso a processos civilizat\\xf3rios e de humaniza\\xe7\\xe3o. O que n\\xf3s temos neste momento no Brasil \\xe9 uma perda desses indicadores. Estamos com 13 milh\\xf5es de desempregados. Aumentamos o n\\xfamero de pessoas abaixo da linha da mis\\xe9ria, que s\\xe3o menos de 2 d\\xf3lares por dia. Esses par\\xe2metros mostram, objetivamente, que n\\xf3s estamos num processo de desumaniza\\xe7\\xe3o acelerada. O presidente colocou em xeque todos os programas de sa\\xfade mental, suspendeu at\\xe9 janeiro todos os exames de HIV e de hepatite C. O n\\xfamero de feminic\\xeddio dispara no Brasil. Tem muito mais gente na rua, muito mais gente desempregada, muita gente dormindo na cal\\xe7ada e temos excesso de bens para alguns. Esses dados s\\xe3o os indicadores de desumaniza\\xe7\\xe3o que n\\xf3s temos. Voc\\xea viu que na Argentina come\\xe7ou a taxa\\xe7\\xe3o das grandes fortunas? Agora, a ideologia dominante fez a cabe\\xe7a do nosso povo e o desempregado \\xe9 contra a taxa\\xe7\\xe3o de grandes fortuna.\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/12/5fd3b008e79c8/padre-julio-lancelloti-trip-fm-mh5.jpg; CREDITS=Mario Ladeira; LEGEND=Padre J\\xfalio j\\xe1 resistiu em reintegra\\xe7\\xf5es de posse, levou bomba de g\\xe1s em manifesta\\xe7\\xf5es de rua e denuncia com frequ\\xeancia a viol\\xeancia policial, e manteve seu trabalho humanit\\xe1rio cotidiano. ]\\nLEIA TAMB\\xc9M:\\xa0Os objetos mais preciosos dos moradores de rua\\nQual foi a \\xfaltima vez que voc\\xea chorou? Hoje me emocionou muito uma not\\xedcia que eu vi: o Canad\\xe1 comprou em vacinas a quantia de cinco doses para cada cidad\\xe3o canadense, quando s\\xe3o necess\\xe1rias duas doses. Para qu\\xea? Os pa\\xedses ricos v\\xe3o comprar toda a vacina, e o que vai sobrar para a Eti\\xf3pia, o que vai sobrar para a Som\\xe1lia? Esse \\xe9 o mundo que n\\xf3s n\\xe3o podemos aceitar. Seria bonito que o Canad\\xe1 usasse as duas doses da vacina em cada canadenses e em todos os imigrantes que moram l\\xe1, e as outras tr\\xeas que sobrarem fossem doadas aos pa\\xedses pobres. Porque nesse momento a vacina virou um neg\\xf3cio pol\\xedtico. A discuss\\xe3o no Brasil sobre a vacina \\xe9 pol\\xedtica, \\xe9 ideol\\xf3gica. Estamos vivendo uma emerg\\xeancia sanit\\xe1ria que precisa de respostas solid\\xe1rias, humanizadoras. Muita gente falou: "N\\xf3s vamos sair dessa pandemia melhores". Voc\\xea olha a 25 de mar\\xe7o nesses dias e voc\\xea diz: "Como \\xe9 que ainda n\\xe3o entrou na cabe\\xe7a desse povo?". Daqui 15 dias \\xe9 Natal, todos os que se contaminaram l\\xe1 v\\xe3o aparecer no Natal. Ent\\xe3o a gente n\\xe3o pode ser nem alarmista, nem pessimista, mas a gente tem que ser realista.\\xa0Talvez quando eu diga seja um pouco incompreens\\xedvel, mas eu luto n\\xe3o pra ganhar, mas para ser fiel.\\nDurante a sua luta voc\\xea tem recebido amea\\xe7as, algumas concretas. Voc\\xea chegou a fazer boletim de ocorr\\xeancia ap\\xf3s dois homens gritarem amea\\xe7as para voc\\xea na rua. Mas d\\xe1 a impress\\xe3o \\xe0s vezes que voc\\xea n\\xe3o tem medo de morrer. Voc\\xea tem medo de morrer ou n\\xe3o? Acho que medo de morrer todos temos, porque \\xe9 um desconhecido. Eu tenho que aprender o que \\xe9 morrer. Outro dia uma jornalista me perguntou se eu tenho alguma pretens\\xe3o pol\\xedtica e eu falei que eu tenho tr\\xeas pretens\\xf5es: o hospital, o asilo ou o cemit\\xe9rio. Na idade em que eu estou s\\xe3o essas as tr\\xeas possibilidades no meu horizonte. Eu n\\xe3o sei como \\xe9 morrer, eu ainda n\\xe3o morri. Eu vou aprender a morrer na hora que eu morrer, como voc\\xea. \\xc9 uma aprendizagem t\\xe3o nossa que a gente n\\xe3o vai poder contar para os outros como \\xe9 que foi. Esse medo eu acho que todos n\\xf3s temos. Agora, o medo das amea\\xe7as n\\xe3o pode me acovardar. Eu n\\xe3o tenho condi\\xe7\\xf5es, at\\xe9 de identidade e psicol\\xf3gicas, de voltar atr\\xe1s naquilo que eu acredito e naquilo que eu fa\\xe7o. Eu n\\xe3o posso ver maltratarem os moradores de rua e ficar calado, n\\xe3o estaria em mim. Eu seria falso se eu assumisse o sil\\xeancio ou me calasse diante de uma homofobia, diante de transfobia, diante de racismo, diante de \\xf3dio aos pobres, de tortura a presos e a moradores de rua. Eu formei a minha identidade e eu me reconhe\\xe7o assim. Vou fazer nesse m\\xeas 72 anos. Nesses anos todos de vida quatro pessoas que iam me matar vieram pedir perd\\xe3o e dizer que iam me matar e n\\xe3o conseguiram. Eu confio na prote\\xe7\\xe3o de Deus. Confio na for\\xe7a e na coragem, porque se eu for ficar com medo... Eu gosto de um canto das comunidades de base que diz "quem tem medo sofre mais". A gente tem medo. Eu tenho medo. Eu choro. E eu ainda n\\xe3o sei como \\xe9 morrer, embora a minha vida seja marcada pela morte de muitas pessoas queridas. Eu tenho marcado em mim a morte do meu pai, a morte muito dolorosa da minha m\\xe3e, dos meus dois irm\\xe3os, da minha cunhada, de todas as crian\\xe7as que eu cuidei na Casa Vida e que morreram de Aids. Todas muito pequeninas, jovens, a mais velha morreu com 16 anos. Os outros todos com menos idade. Eu carrego a marca das dores de todas essas pessoas queridas. Me marcou muito a morte de Dom Luciano Mendes de Almeida, a morte de Dom Paulo Evaristo Arns, a morte de Dom Pedro Casald\\xe1liga. Todas as pessoas que me marcaram na vida. Eu tenho muitos nomes. O que nos humaniza \\xe9 termos muitos nomes gravados na nossa mem\\xf3ria.\\nLEIA TAMB\\xc9M:\\xa0Black Alien conta como superou as drogas e a morte do melhor amigo\\nSobre o Natal, parece que \\xe9 uma data que se transformou numa campanha gigantesca de publicidade, shoppings, presentes e Papai Noel com as renas. Se a gente j\\xe1 tinha perdido conex\\xe3o com o seu significado, agora ele ainda vai acontecer em meio a uma pandemia que impossibilita os encontros nas fam\\xedlias. O que \\xe9 o Natal para voc\\xea? O Natal \\xe9 pra mim \\xe9 forte e importante na simplicidade de um Deus que se faz humano, fraco e pequeno. De um Deus que n\\xe3o \\xe9 poderoso e \\xe9 amoroso, que n\\xe3o \\xe9 adulto e \\xe9 crian\\xe7a, que n\\xe3o \\xe9 rico mas \\xe9 pobre, que n\\xe3o est\\xe1 no pal\\xe1cio mas est\\xe1 na rua. \\xc9 de novo chamar a nossa aten\\xe7\\xe3o de crer no imposs\\xedvel, e de crer no inacredit\\xe1vel, e esperar aquilo que vai chegar, n\\xe3o sabemos quando, mas que \\xe9 o despojamento do amor. Para mim o Natal \\xe9 essa simplicidade amorosa de dar a vida, de estar com os fracos e nunca querer ser forte.\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/12/5fd3b061ac2b0/padre-julio-lancelloti-trip-fm-mh6.jpg; CREDITS=Mario Ladeira; LEGEND=Padre J\\xfalio Lancelloti]'