Maria Homem: O que a pandemia nos revela

Published: Nov. 27, 2020, 11 p.m.

b'A psicanalista avalia o impacto do momento que estamos vivendo em nossa saúde mental, na vida sexual e na compreensão da morte\\n \\n "Maior laborat\\xf3rio subjetivo de nossa hist\\xf3ria". \\xc9 assim que a psicanalista Maria Homem descreve o momento que estamos vivendo. Inesperada, imprevis\\xedvel e fora do nosso controle, a pandemia da Covid-19 desencadeou um turbilh\\xe3o de mudan\\xe7as e sentimentos e imp\\xf4s a adapta\\xe7\\xe3o a uma nova vida que abarca medos e ang\\xfastias. O medo do v\\xedrus,\\xa0 medo pela pr\\xf3pria vida, pela fam\\xedlia, as incertezas quanto ao futuro, quanto ao trabalho e quanto ao planeta emergiram acompanhadas de descobertas dentro de casa, das rela\\xe7\\xf5es \\xedntimas e at\\xe9 dentro de si. S\\xe3o essas descobertas e experi\\xeancias que ainda est\\xe3o em curso que Maria tenta entender.\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/11/5fc175433d5ca/maria-homem-psicanalista-trip-fm-m1.jpg; CREDITS=Victor Affaro / Editora TRIP; LEGEND=A psicanalista Maria Homem]\\nUma das profissionais mais destacadas do pa\\xeds em sua \\xe1rea, Maria Homem \\xe9 pesquisadora do N\\xfacleo Diversitas da FFLCH/USP, professora da Faap e autora de alguns livros, entre eles o rec\\xe9m-lan\\xe7ado Lupa da Alma, no qual ela mergulha nos impactos que a quarentena trouxe para as nossas vidas e para a nossa mente. Em conversa com a Trip, a psicanalista\\xa0fala sobre como esse momento est\\xe1 mudando a nossa rela\\xe7\\xe3o com o corpo, com o sexo, com a morte e com a natureza, e destaca que esse per\\xedodo pode trazer tamb\\xe9m aprendizados positivos para a nossa forma de lidar com os outros e com a Terra: "\\xc9 uma oportunidade, sem d\\xfavida. S\\xe3o puls\\xf5es destrutivas para eventualmente quebrar formas de pensar, para se criar o novo. Se a gente estava fingindo que n\\xe3o estava vendo, agora a gente est\\xe1 vendo muito bem."\\nLEIA TAMB\\xc9M:\\xa0D\\xe1 para manter a sanidade mental durante uma pandemia?\\nSabemos que por causa da pandemia muitos encontros passaram para o ambiente virtual e isso inclui os encontros entre os psicanalistas e seus pacientes. Eu fiz terapia por d\\xe9cadas, mas sempre presencial, ali com a pessoa olhando no olho. Para voc\\xea, que exerce esse trabalho, como essa nova dist\\xe2ncia afeta na rela\\xe7\\xe3o entre o profissional e o paciente?\\nMaria Homem. Eu atendo muita gente de fora de S\\xe3o Paulo ou mesmo do Brasil e sempre usei um m\\xe9todo que \\xe9 assim: eu uso Skype, mas n\\xe3o uso o v\\xeddeo, s\\xf3 \\xe1udio. A an\\xe1lise n\\xe3o tem a ver com esse face a face, ela tem a ver justamente com a fala e com o inconsciente. A psican\\xe1lise stricto sensu \\xe9 justamente deixar fluir e o mais pr\\xf3ximo que a gente tem do div\\xe3 \\xe9 voc\\xea simplesmente falar. Ent\\xe3o eu acho que funciona. O meu depoimento \\xe9 que \\xe0s vezes at\\xe9 funciona mais, justamente porque voc\\xea n\\xe3o tem "o constrangimento" da presen\\xe7a, da materialidade, do olhar. "O que ser\\xe1 que o outro est\\xe1 achando? Como \\xe9 que eu estou nessa poltrona, ser\\xe1 que eu estou bem?" O Freud queria a associa\\xe7\\xe3o livre, e a\\xed a gente consegue chegar nesse libert\\xe1rio de um jeito curiosamente mais interessante. Eu costumo fazer uma compara\\xe7\\xe3o que n\\xe3o \\xe9 muito elegante, mas eu vou mandar bala aqui: sabe essa chats? Esses jogos sexuais? Que \\xe0s vezes a figura se sente at\\xe9 mais pr\\xf3xima das suas fantasias mais secretas e ela vai cont\\xe1-las para um desconhecido, ou para algu\\xe9m que ela n\\xe3o est\\xe1 vendo? Ali se tem a coragem de se abrir. Eu diria que tem algo que \\xe9 dessa ordem, sabe?\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/11/5fc17578f0cf2/maria-homem-psicanalista-trip-fm-m3.jpg; CREDITS=J\\xf5ao Kehl / Revista Gol; LEGEND=Maria Homem]\\nComo \\xe9 que esse momento da pandemia est\\xe1 afetando a sa\\xfade mental das pessoas? Eu acabei de fazer um livrinho sobre isso chamado Lupa da Alma, com um subt\\xedtulo que j\\xe1 revela o jogo \\u2013\\xa0Quarentena revela\\xe7\\xe3o \\u2013, que parte da hip\\xf3tese que esse momento hist\\xf3rico peculiar tem uma dupla caracter\\xedstica: primeiro que ele coloca gente sob amea\\xe7a porque \\xe9 um v\\xedrus, \\xe9 um adoecimento, \\xe9 um risco de sequela e eventualmente de morte, ent\\xe3o voc\\xea lida com o medo e com qualquer tipo de fobia real e imagin\\xe1ria; e segundo, o que a gente tem para lutar contra isso agora? O isolamento social, a quarentena, o confinamento. Voc\\xea est\\xe1 confinado fora do grupo, da teia social mais ampla, longe de todos os outros e muito perto de alguns, normalmente poucos, com quem voc\\xea convive ou calhou de conviver. Essa dupla situa\\xe7\\xe3o revela muita coisa. Desvela. Tudo o que a gente jogou pra debaixo do tapete, tudo o que a gente foi acumulando, agora veio \\xe0 tona. A gente est\\xe1 agudo, num pico de intensidade, porque tudo o que era morno, tudo o que voc\\xea deixava ali de lado, agora incomoda. H\\xe1 muito esfor\\xe7o pra deixar sob controle at\\xe9 a mediocridade cotidiana, sabe? Da qual a gente se distrai ali no bar, no boteco, no restaurante, nessa sociabilidade, levemente numa l\\xf3gica de entretenimento, que \\xe9 da vida. Quando voc\\xea tira essas anestesias, a\\xed d\\xf3i.\\nLEIA TAMB\\xc9M:\\xa0Viviane Mos\\xe9 fala sobre felicidade e solid\\xe3o na pandemia\\nNesse per\\xedodo eu conversei com o Ailton Krenak, e ele fala que tem horror \\xe0 express\\xe3o "precisamos voltar ao normal". O normal, na vis\\xe3o dele, era o que estava nos levando a uma situa\\xe7\\xe3o insustent\\xe1vel, e ele reza para que a gente n\\xe3o volte ao normal e entenda que aquele normal era uma doen\\xe7a, uma patologia. Para al\\xe9m desses aspectos dif\\xedceis que voc\\xea acabou de descrever deste per\\xedodo, d\\xe1 para ver um lado positivo dessa experi\\xeancia e das descobertas que ela traz? Eu mesma citei o Krenak no livro. \\xc9 um cara de quem eu gosto e que eu acompanho o pensamento, e eu acho que essa \\xe9 uma reflex\\xe3o necess\\xe1ria. Estou agora dando aula para os alunos na FAAP e, sobretudo para essas novas gera\\xe7\\xf5es, os alunos de gradua\\xe7\\xe3o de 20 anos, a gente tem a sensibilidade de ler uma ang\\xfastia que \\xe9 assim: "Nossa, que mundo \\xe9 esse que eu estou sendo convidado a entrar? Ideias para adiar o fim do mundo, por favor". "Como assim est\\xe3o rifando o meu futuro? O amanh\\xe3 n\\xe3o est\\xe1 a venda". A presen\\xe7a do mercado, um totalitarismo de rela\\xe7\\xf5es de compra e venda, de extra\\xe7\\xe3o, esse paradigma extrativista e uma l\\xf3gica hiper mercadol\\xf3gica que vai objetificando todos e todas, eu acho que j\\xe1 est\\xe3o muito claros para essas novas gera\\xe7\\xf5es, e est\\xe1 nascendo esse paradigma de uma outra sensibilidade. Existe o outro, e pode ser interessante, e existe o tempo, existe a \\xe1gua, existe a natureza e existem pesquisas de posi\\xe7\\xf5es menos b\\xe9licas com o outro, com a alteridade radical, que seja do ouro, da pedra, da mata, do conflito, do desejo ou da cor da pele.\\nO livro vai do eu, do mais \\xedntimo, at\\xe9 a morte. Vai em espirais ascendentes que se amplificam, ent\\xe3o o eu, o elo, o amor, o desamor, a fam\\xedlia, o trabalho e chega no planeta. \\xc9 uma oportunidade, sem d\\xfavida. S\\xe3o puls\\xf5es destrutivas para eventualmente quebrar formas de pensar, para se criar o novo. Se a gente estava fingindo que n\\xe3o estava vendo, agora a gente est\\xe1 vendo muito bem. A pr\\xf3pria Trip est\\xe1 a\\xed h\\xe1 d\\xe9cadas tentando modular, desenhar um pouco isso. Propor de alguma maneira uma reflex\\xe3o, com o desafio de fazer isso dentro de um mercado real. Voc\\xea tamb\\xe9m tem que sobreviver, n\\xe3o deixa de ser uma empresa. \\xc9 um pouco o desafio de todos n\\xf3s no in\\xedcio do s\\xe9culo 21: como viver, como poder existir de outra maneira, mas ao mesmo tempo questionando o jogo, que \\xe9 muito pesado para muita gente. A consci\\xeancia \\xe9 o primeiro passo para construir uma outra realidade que se queira para voc\\xea.\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/11/5fc175ac19216/maria-homem-psicanalista-trip-fm-m2.jpg; CREDITS=Divulga\\xe7\\xe3o; LEGEND=Maria Homem]\\n\\xa0Qual o impacto que essa experi\\xeancia da pandemia tem na nossa vida no aspecto sexual? O que est\\xe1 acontecendo nesse lugar da vida das pessoas sob o efeito do v\\xedrus? Voc\\xea percebe movimenta\\xe7\\xf5es diferentes, rea\\xe7\\xf5es diferentes, emo\\xe7\\xf5es diferentes no campo sexual? Eu diria que est\\xe1 mais pra menos do que pra mais. Se fosse dar uma s\\xedntese do que se escuta aqui, eu tenho algumas hip\\xf3teses sobre isso. Vou pegar tr\\xeas pontos s\\xf3 pra amansar e bater um papo. O primeiro \\xe9 que acho que a gente n\\xe3o faz muito mais erotiza\\xe7\\xe3o do encontro com o outro. A gente faz mais um sexo protocolar, quase um exerc\\xedcio aer\\xf3bico, cat\\xe1rtico, uma pequena descarga. Sabe aquela briga que d\\xe1 uma aliviada com aquela trepada? A gente tem muito uso comum, um ato desimplicado. Ent\\xe3o quando chega na hora de uma hiper conviv\\xeancia, o encontro mais olho no olho onde se esbarra e onde se est\\xe1 nessa tens\\xe3o, a\\xed a coisa complica. Como \\xe9 que voc\\xea vai fazer essa pesquisa que \\xe9 o erotismo? Eu estou usando esse termo, que talvez seja um nome apropriado para essa antiga ci\\xeancia milenar mesmo. Tem tratados de arte er\\xf3tica japonesa, arte er\\xf3tica hindu, deve ter tamb\\xe9m ind\\xedgena. N\\xe3o sei se tem norte-americana, que \\xe9 s\\xf3 a base protestante radical e sua necessidade de repress\\xe3o ao sexo. N\\xe3o sei se na Europa t\\xe3o crist\\xe3 tamb\\xe9m. A gente come\\xe7a a perceber o quanto a nossa cultura reprime o er\\xf3tico, reprime Eros. Simples assim. O quanto \\xe9 tabu e o quanto a gente faz um sexo protocolar, assim, com perd\\xe3o da palavra, vagabundo. Muito raso. Ent\\xe3o o primeiro ponto \\xe9 que a gente est\\xe1 vendo e est\\xe1 vivendo isso. Quem sabe alguns poucos aproveitaram tamb\\xe9m esse momento pra se divertir com isso. Netflix ganhou dinheiro, Amazon ganhou dinheiro, agora, acho que algumas poucas almas iluminadas deixaram seus corpos fazerem suas descobertas.\\nE falando em corpo, o segundo ponto \\xe9: o corpo est\\xe1 sub judice. O corpo est\\xe1 amea\\xe7ado, porque a gente est\\xe1 falando de uma doen\\xe7a. Tanto em termos micro, de cada encontro, quanto macro, \\xe9 o corpo do outro que eu vou temer, porque ele \\xe9 a fonte da contamina\\xe7\\xe3o. Eu tenho medo, eu passo de ladinho, eu vou usar m\\xe1scara, vou lavar a m\\xe3o, passar \\xe1lcool. Isso n\\xe3o \\xe9 sem consequ\\xeancia sobre a nossa maneira de se relacionar, n\\xe3o s\\xf3 com o estranho, mas mesmo com o pr\\xf3ximo, ainda que inconscientemente. Fomos atingidos na carne. O mil\\xeanio dos v\\xedrus entendeu que somos corp\\xf3reos. O que \\xe9 normal, como \\xe9 que a gente vai repensar a norma? Sem d\\xfavida, n\\xe3o sou nada simp\\xe1tica \\xe0 palavra normal como contraposto ao patol\\xf3gico, ao que seria a padroniza\\xe7\\xe3o do bem, desconfio profundamente disso. Eu diria que a norma \\xe9 s\\xf3 uma curva, a curva normal, que mostra padr\\xf5es. Acho que a gente pode explodir um pouco a curva, deixar ela ser um pouco mais inst\\xe1vel. Suportar essa instabilidade at\\xe9 tirar as normas que a gente coloca sobre o corpo. O que seria o corpo bonito, sarado, limpinho, durinho e todas essas sinaliza\\xe7\\xf5es muito autorit\\xe1rias sobre o corpo. Isso tamb\\xe9m est\\xe1 em jogo quando a gente fala de sexualidade ou de erotismo. A gente pode construir pensamentos do tipo "mas eu engordei agora na quarentena", "deixa eu abrir uma outra garrafa de vinho". O encontro com o outro \\xe9 "ai, que pregui\\xe7a, deixa eu ficar aqui na minha casinha, deixa eu ficar aqui no meu Instagram". Esse \\xe9 o terceiro ponto que eu colocaria aqui: o sexo \\xe9 tamb\\xe9m encontro com o outro, \\xe9 tamb\\xe9m alteridade, \\xe9 tamb\\xe9m um jogo, \\xe9 uma dan\\xe7a, \\xe9 palavra. Sexo n\\xe3o \\xe9 s\\xf3 corpo, ele \\xe9 essa coisa estranh\\xedssima que \\xe9 o entrela\\xe7amento entre o corpo e a alma. Como diria Freud, a puls\\xe3o est\\xe1 no limiar entre som\\xe1tico e o ps\\xedquico. Ser\\xe1 que a gente sabe fazer isso bem? Ser\\xe1 que a gente pesquisa isso bem? A psican\\xe1lise tem s\\xf3 cem anos, \\xe9 muito pouquinho. Qual \\xe9 a propor\\xe7\\xe3o da popula\\xe7\\xe3o humana que est\\xe1 um pouco advertida disso e que tem o privil\\xe9gio de fazer essa pesquisa com menos defesa, com menos proje\\xe7\\xe3o, com menos agress\\xe3o?\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/11/5fc175d64c383/maria-homem-psicanalista-trip-fm-m4.jpg; CREDITS=J\\xf5ao Kehl / Revista Gol; LEGEND=Maria Homem]\\nLEIA TAMB\\xc9M:\\xa0Amor e sexo em tempos de pandemia\\nMe parece que um efeito colateral desse v\\xedrus foi obrigar as pessoas a pensarem mais na morte, a terem mais clareza sobre a finitude. De repente a morte, que era uma coisa que acontecia s\\xf3 com o vizinho, chega bem perto de voc\\xea, nos seus familiares. \\xc9 positivo que, ainda que no tranco, a gente comece a querer pesquisar mais sobre a nossa exist\\xeancia. Voc\\xea sente isso nas pessoas que te procuram pela primeira vez? Eu acho essa a coisa mais n\\xe3o s\\xf3 interessante como talvez necess\\xe1ria, n\\xe9? Se eu acho positivo? Sem sombra de d\\xfavida. Por isso que eu mesma usei essa express\\xe3o "maior laborat\\xf3rio subjetivo da esp\\xe9cie humana". Tem um dado muito importante que \\xe9 o tempo, diferentemente das outras pestes \\u2013 a peste negra, a Gripe Espanhola, 1300 e 1900 \\u2013, onde a velocidade de transmiss\\xe3o era muito menor porque a nossa velocidade de locomo\\xe7\\xe3o era infinitamente menor. Demorou anos, eventualmente d\\xe9cadas, para a peste bub\\xf4nica tomar conta de muitos vilarejos e pa\\xedses da Europa e chegar na Eur\\xe1sia, e outros tantos anos para isso refluir. \\xc9 algo que vai se espalhando. Agora, demorou semanas. E gente come\\xe7ou a ouvir "j\\xe1 chegou aqui" porque foi no casamento tal, foi na comemora\\xe7\\xe3o xyz, a gente t\\xe1 vendo isso e vivendo. Como \\xe9 que a gente pode subjetivar essa experi\\xeancia que \\xe9 tamb\\xe9m coletiva? Como \\xe9 que a gente pode elaborar isso juntos? Inclusive a coisa muito peculiar que \\xe9 elaborar a perda, o medo, a ang\\xfastia e a morte. Essa consci\\xeancia de que chega um dia e o seu cora\\xe7\\xe3o para de bater. \\xc9 a \\xfanica coisa n\\xe3o imprevis\\xedvel da sua vida, ela \\xe9 certa. Voc\\xea n\\xe3o sabe quando. Voc\\xea tem alguns dados: se voc\\xea tratar muito mal o seu corpo, o cora\\xe7\\xe3o vai aguentar menos \\u2013 \\xe9 matem\\xe1tica isso, tem estudos. E como \\xe9 que a gente faz para poder falar sobre a perda, falar sobre o medo, saber da morte? Ser\\xe1 que a gente vai conseguir, como cultura, deixar a morte menos tabu? Eu diria que assim como a gente tirou um pouco o corpo de um tabu\\xa0 \\u2013 mas n\\xe3o tanto quanto a gente diz, n\\xe3o sei se sexo e corpo s\\xe3o t\\xe3o menos tabus do que antes \\u2013, agora talvez a gente possa p\\xf4r a morte no centro da roda e naturalizar um pouco mais uma das coisas mais comuns da vida.\\nLEIA TAMB\\xc9M:\\xa0O celular n\\xe3o \\xe9 a cura para a solid\\xe3o da quarentena\\nAmbos temos filhos de 10 anos de idade e eu n\\xe3o sei como \\xe9 o seu, mas eu vejo claramente uma quest\\xe3o que preocupa que \\xe9 esse encantamento pela tela, pra n\\xe3o dizer v\\xedcio. A crian\\xe7a fica completamente abduzida por aquelas cores, emo\\xe7\\xf5es e explos\\xf5es de informa\\xe7\\xe3o que aparecem na tela. Como voc\\xea faz para lidar com isso?\\xa0Esse \\xe9 um bom debate. Voc\\xea v\\xea como a gente \\xe9 um bichinho que foge, n\\xe9? Como a estrutura do humano \\xe9 profundamente f\\xf3bica. A gente tem medo, tem muito medo, e, bobeou, a gente cria territ\\xf3rios, ilhas de escape. \\xc0s vezes um escape t\\xe3o bem feito que \\xe9 uma realidade perfeita \\u2013 a gente at\\xe9 chama de second life uma realidade virtual. O mundo vai nessa dire\\xe7\\xe3o, n\\xe3o tem d\\xfavida. Eu fui h\\xe1 muitos anos para o Egito e eu lembro que eu era fascinada pelo Imp\\xe9rio Eg\\xedpcio, o Rio Nilo, Luxor, capital do antigo imp\\xe9rio. Para visitar esses lugares eu tinha que acordar \\xe0s cinco da manh\\xe3 para ir com um guia e voltava umas nove, quando j\\xe1 estava 50 graus. A\\xed ficava trancada talvez das 10h \\xe0s 15h no ar-condicionado, que era quase um luxo que tinha no hotel. As pessoas v\\xe3o falar: "Meu Deus, que pregui\\xe7a. Voc\\xea fica ali sete, dez dias, e vai conhecer as coisas e ver aquelas pedras. J\\xe1 vi tanta foto. J\\xe1 vi obelisco em Paris, pra que eu quero ver aquele outro l\\xe1 na frente do templo? E que \\xe9 isso de Nefertiti?". Ent\\xe3o acho que a realidade ela custa e ela d\\xf3i. Como \\xe9 que a gente vai ensinar para as crian\\xe7as, como a gente vai transmitir para os nossos filhos e para toda a inf\\xe2ncia o maravilhamento do real? Eu tenho essa pergunta, voc\\xea tem raz\\xe3o, eu estou nessa miss\\xe3o. Pessoalmente estou imbu\\xedda disso. N\\xe3o sei se eu tive sorte, mas eu acho que aqui eu n\\xe3o tenho muita ang\\xfastia quanto a isso porque est\\xe1 dando para negociar. A vida pode ser um pouco trabalhosa, n\\xe9? A gente tem um corpo pra cuidar, tem que alimentar, tem que lavar, tem que escovar os dentes, porque o corpo \\xe9 mortal e perec\\xedvel. Mas olha s\\xf3 que bom: s\\xf3 com ele voc\\xea consegue ter o prazer de pular, de correr, de tomar sorvete, de outras del\\xedcias que nossos filhos que v\\xe3o para sua segunda d\\xe9cada v\\xe3o descobrir logo mais, est\\xe3o descobrindo. O corpo sempre foi esse fio da navalha, n\\xe9? \\xc9 o que a gente mais ama e mais odeia, fonte de prazer e desprazer. Se cada pai, m\\xe3e, com o seu pr\\xf3prio corpo, com seu pr\\xf3prio ser e com o outro, est\\xe1 tranquilo quanto a isso, voc\\xea vai saber transmitir isso. Voc\\xea vai ter criatividade, vai instigar de sair, de viajar, de fazer trilha, jogar bola. A viagem real \\xe9 multifacetada, tem v\\xe1rias camadas. A tela n\\xe3o deixa de ser 2D. Por mais que a gente tenha a tecnologia e \\xf3culos pra nos enganar, a realidade dura e crua \\xe9 que \\xe9 s\\xf3 2D.'