Marcello Serpa: de Cannes ao Havai

Published: July 17, 2020, 11 p.m.

b'Um dos mais importantes publicitários do mundo, Serpa conta o que aprendeu ao largar a loucura das agências para viver na ilha de Oahu\\n \\n Um dos mais importantes publicit\\xe1rios brasileiros, Marcello Serpa resolveu deixar os Le\\xf5es que ganhou em Cannes na prateleira e partir para uma vida mais simples no Hava\\xed. Em 2015, aos 52 anos, ele vendeu sua participa\\xe7\\xe3o na ag\\xeancia AlmapBBDO, onde trabalhou por mais de duas d\\xe9cadas e que projetou no cen\\xe1rio mundial, e se mudou com a mulher e os filhos para a ilha de Oahu, no famoso North Shore. E n\\xe3o se arrependeu nem por um instante. \\u201cVoc\\xea tem que abrir m\\xe3o da imagem que voc\\xea se acostumou a construir. Voc\\xea se desapega e isso deixa de ter import\\xe2ncia\\u201d, conta. \\u201cA gente se acostuma a ter em excesso coisas que n\\xe3o precisa e voc\\xea toma s\\xf3 conhecimento disso quando abre m\\xe3o. Eu achei que eu pudesse sofrer uma s\\xedndrome de abstin\\xeancia, mas, pelo contr\\xe1rio, hoje estou feliz da vida com nossa vida calma, simples e tranquila\\u201d.\\nForam 34 anos de profiss\\xe3o antes de resolver viver perto das ondas mais famosas do mundo. Marcello come\\xe7ou a carreira na Alemanha e, no Brasil, passou por ag\\xeancias como a DM9 e a DPZ at\\xe9 se tornar s\\xf3cio, aos 29 anos, da Almap (hoje AlmapBBDO). Mas as mudan\\xe7as no mercado da publicidade o fizeram questionar se valia a pena continuar. \\u201cN\\xe3o posso ficar preso naquela coisa de ficar achando que antigamente era muito melhor, idade de ouro da propaganda e n\\xe3o sei o qu\\xea. Porque isso a\\xed \\xe9 coisa de velho. Quem vive de passado \\xe9 museu\\u201d, diz. De sua casa em Velzyland, no North Shore havaiano, Marcello bateu um papo com Paulo Lima sobre os aprendizados da nova rotina, surf e a brasilidade que ele tanto sente falta, mas que acredita estar amea\\xe7ada pelo autoritarismo.\\n[AUDIO=https://p.audio.uol.com.br/trip/2020/7/TRIPFM_Serpa_Podcast.mp3; IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/07/5f11012fe4693/marcelo-serpa-tripfm-mz1.jpg]\\nLEIA TAMB\\xc9M: O fot\\xf3grafo Vav\\xe1 Ribeiro revela as muitas vers\\xf5es de um para\\xedso chamado Hava\\xed\\nTrip. Foi mais ou menos no final de 2015 que voc\\xea tomou a decis\\xe3o de encerrar a sua liga\\xe7\\xe3o umbilical com a propaganda e deslocar seu eixo completamente para um lugar bem distante no Pac\\xedfico e ir para o Hava\\xed. Na \\xe9poca, voc\\xea disse em uma entrevista \\xe0 Trip que ia fazer um sab\\xe1tico de dois anos. E j\\xe1 passaram mais de quatro anos. Queria que voc\\xea fizesse um r\\xe1pido apanhado desse per\\xedodo.\\nMarcello Serpa. A decis\\xe3o foi um pouco anterior \\xe0 2015 porque eu tive que preparar toda essa mudan\\xe7a. Mas a ideia era sair da propaganda e fazer um detox completo. Eu achava que ia ter uma tremenda dificuldade de encontrar um caminho para mim fora da propaganda no meio daquela m\\xe1quina de lavar que \\xe9 S\\xe3o Paulo. Eu pensei: poxa, a gente construiu uma casa no Hava\\xed, vamos l\\xe1 passar um ano, dois. Acontece que quando voc\\xea sai de S\\xe3o Paulo \\u2013 daquela vida louca que a gente levava, a vida do hamster \\u2013, quando voc\\xea sai da gaiolinha e est\\xe1 num lugar paradis\\xedaco, onde tudo anda numa velocidade completamente diferente, voc\\xea d\\xe1 uma desacelerada absurda. Eu fiz um est\\xfadio para me dedicar \\xe0 pintura e achei que ia ficar louco trancado ali, mas, pelo contr\\xe1rio, eu me achei ali dentro. E, se voc\\xea pega a onda, isso aqui \\xe9 a Meca, \\xe9 a Bas\\xedlica de S\\xe3o Pedro. Voc\\xea est\\xe1 nas melhores ondas do mundo, sendo desafiado o tempo todo. Ent\\xe3o eu entrei num processo de aprender a funcionar numa velocidade muito menor, num lugar muito mais tranquilo, sem grandes expectativas a n\\xe3o ser as ondas, que s\\xe3o muito maiores e poderosas do que eu consigo surfar. Ent\\xe3o fui aprendendo tamb\\xe9m, me preparando fisicamente, psicologicamente, preparando o pulm\\xe3o pra poder sobreviver a uns caldos gigantescos. Eu sa\\xed da propaganda, mas descobri uma s\\xe9rie de coisas maravilhosas pra fazer e estou muito feliz. E a gente foi estendendo e provavelmente vai sair daqui em 2022.\\nBoa parte das pessoas alimenta em algum momento essa ideia de uma virada radical. E pouca gente consegue efetivar isso, por milh\\xf5es de raz\\xf5es. \\xc0s vezes quest\\xf5es ligadas aos filhos, ou travas que voc\\xea mesmo cria, ligadas a dinheiro, status, coisas que v\\xe3o te segurando numa esp\\xe9cie de gaiola. E talvez os medos que a gente constr\\xf3i dentro da pr\\xf3pria cabe\\xe7a sejam \\xe0s vezes travas. Voc\\xea \\xe9 um cara que precisou ter uma certa ousadia e enfrentar certas brigas para fazer o seu papel profissionalmente. Mas os m\\xe9ritos interiores s\\xe3o os mais dif\\xedceis, n\\xe9? Quais fantasminhas voc\\xea teve que tirar das caixas e aprender a dan\\xe7ar com eles?\\xa0Eu fiz an\\xe1lise a minha vida toda e, quando voc\\xea faz an\\xe1lise, os fantasmas est\\xe3o na sala, aparecem. E voc\\xea come\\xe7a a conversar com eles e se prepara um pouquinho para enfrent\\xe1-los. Mas, para qualquer cara que trabalha em uma \\xe1rea onde ele tem um pouquinho mais de destaque \\u2013 quando as coisas te d\\xe3o o que voc\\xea acabou de mencionar: o conforto, o reconhecimento, o seu papel na sociedade \\u2013, o medo de perder isso acho que \\xe9 uma das coisas mais importantes. O ego vai sofrer porque voc\\xea vai entrar num lugar onde ningu\\xe9m sabe quem voc\\xea \\xe9. E quando voc\\xea entra dentro d\'\\xe1gua, voc\\xea \\xe9 o \\xfaltimo na cadeia alimentar, voc\\xea est\\xe1 base. Eu lidei com esse medo muito antes de sair da ag\\xeancia. O fantasma acabou se tornando uma coisa menor. Mas \\xe9 o medo de perder essa relev\\xe2ncia, ou o conforto, ou o ego, sei l\\xe1, pode chamar do que voc\\xea quiser. \\xc9 um certo desapego que voc\\xea \\xe9 obrigado a ter de si mesmo. E isso deixa de ter import\\xe2ncia. \\xc9 l\\xf3gico que voc\\xea precisa ter o medo da sobreviv\\xeancia financeira, \\xe9 importante, mas voc\\xea se acostuma com menos, a viver uma vida mais simples tamb\\xe9m. A gente vive em S\\xe3o Paulo de uma maneira inflacionada em todos os sentidos. O ego \\xe9 inflacionado, o estilo de vida \\xe9 inflacionado, a gente paga car\\xedssimo em coisas que deveriam ser b\\xe1sicas. A gente se acostuma a ter em excesso coisas que n\\xe3o precisa e voc\\xea s\\xf3 toma conhecimento disso quando abre m\\xe3o. Eu achei que eu pudesse sofrer uma s\\xedndrome de abstin\\xeancia e n\\xe3o sofri. Pelo contr\\xe1rio, hoje estou feliz da vida com nossa vida calma, simples, tranquila. Mas o medo \\xe9 importante. Vencer o medo \\xe9 importante.\\nO outro lado dessa hist\\xf3ria talvez seja uma sensa\\xe7\\xe3o de perda de tempo porque, quando voc\\xea rompe esse v\\xednculo, descobre que talvez voc\\xea pudesse ter feito isso bem antes. Ent\\xe3o eu fico imaginando que pode ser um outro lado da hist\\xf3ria: por que mesmo que eu demorei 50 anos para voltar para um lugar mais simples, mais tranquilo, mais real? Isso tamb\\xe9m passa pela cabe\\xe7a ou j\\xe1 \\xe9 muita loucura?\\xa0Acho que as coisas aconteceram no seu tempo. Eu gostava muito do que eu fazia. O processo de cria\\xe7\\xe3o, campanhas, publicidade, criar uma ag\\xeancia, criar espa\\xe7os de realiza\\xe7\\xe3o, \\xe9 muito legal. Mas, de repente, voc\\xea percebe que essas coisas todas deixam de fazer sentido e voc\\xea come\\xe7a a fazer n\\xe3o pelos motivos que voc\\xea come\\xe7ou, mas sim por outros, como a manuten\\xe7\\xe3o do seu status, do seu nome, da grana. Voc\\xea come\\xe7a a defender as coisas, e n\\xe3o atacar. Quando as coisas come\\xe7am a perder sentido, voc\\xea come\\xe7a a se perguntar: mas por que eu estou vendendo refrigerante, pra que eu fa\\xe7o esse discurso todo meio idiota? E quando esse questionamento aparece, a\\xed sim, est\\xe1 na hora de agir. Mas antes disso, n\\xe3o, acho que em momento algum eu perdi tempo.\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/07/5f1101434ab66/marcelo-serpa-tripfm-mz2.jpg; CREDITS=Bruno Lemos; LEGEND=O publicit\\xe1rio Marcello Serpa: as ondas o levaram a viver perto do mar]\\nLEIA TAMB\\xc9M:\\xa0Rodrigo Matsuda \\xe9 um dos poucos shapers no mundo a se formar nas avan\\xe7adas t\\xe9cnicas de carpintaria japonesa\\nEu estava lendo uma entrevista com um contempor\\xe2neo seu, o Fabio Fernandes, que foi o titular numa outra ag\\xeancia importante, a F/Nazca. Trabalhou d\\xe9cadas pra construir uma ag\\xeancia e acabou vendendo para um grupo estrangeiro. Ele n\\xe3o se furta a mostrar uma certa decep\\xe7\\xe3o pelo desfecho da carreira dele. Ele disse nessa entrevista que n\\xe3o queria sair da ag\\xeancia e acabou sendo destitu\\xeddo. Voc\\xea teve uma experi\\xeancia bem diferente. Talvez o maior Le\\xe3o de Ouro que voc\\xea mere\\xe7a seja do timing, de acertar o momento. O que aconteceu com a propaganda nesses \\xfaltimos anos que fez pessoas como voc\\xea, de uma certa forma, se desencantar com aquela batalha?\\xa0L\\xe1 atr\\xe1s, em 2012, 2013, eu e o Jos\\xe9 Luiz Madeira, meu s\\xf3cio, come\\xe7amos a observar o mercado, o que estava acontecendo e o que ia acontecer dali pra frente. Eu comecei a perceber que havia uma fragmenta\\xe7\\xe3o natural da m\\xeddia. Come\\xe7ava a ter as m\\xeddias sociais, uma s\\xe9rie de outras op\\xe7\\xf5es do anunciante de fazer propaganda, de se comunicar. Com isso houve uma fragmenta\\xe7\\xe3o da mensagem tamb\\xe9m. E quando voc\\xea fragmenta a mensagem n\\xe3o tem mais a \\u201cbig idea\\u201d, voc\\xea tem uma ideia que se espalha por tudo. Eu percebi na \\xe9poca: isso a\\xed vai acabar com a gra\\xe7a. N\\xe3o com o neg\\xf3cio, vai ser um outro neg\\xf3cio. E a\\xed eu me perguntei: ser\\xe1 que eu quero fazer esse outro neg\\xf3cio onde eu vou ter que fazer uma s\\xe9rie de pequenos conte\\xfados e a \\u201cbig idea\\u201d n\\xe3o existe mais? Eu comecei a olhar aquilo e \\xe9 o processo de perda de tes\\xe3o. Ser\\xe1 que isso faz sentido para mim, ser\\xe1 que eu quero realmente passar por isso? Ou o que me fascina na propaganda \\xe9 algo que j\\xe1 come\\xe7ou a deixar de existir? E a\\xed eu pensei bastante e falei: est\\xe1 hora de sair porque essa profiss\\xe3o n\\xe3o me d\\xe1 mais prazer. Deixa os mais novos fazerem, que j\\xe1 nasceram com esse tipo de tecnologia e de pensamento na cabe\\xe7a. N\\xe3o \\xe9 pra mim isso. Vou me desafiar a fazer coisas novas. N\\xe3o posso ficar preso naquela coisa de ficar achando que antigamente era muito melhor, idade de ouro da propaganda e n\\xe3o sei o qu\\xea. Porque isso a\\xed \\xe9 coisa de velho. Quem vive de passado \\xe9 museu. Eu n\\xe3o me insiro mais nesse momento, ent\\xe3o eu tomo minha decis\\xe3o de sair fora. E acho que reconhecer isso foi uma das grandes coisas na minha vida. Ent\\xe3o os grandes publicit\\xe1rios, Washington [Olivetto], Nizan [Guanaes], Fabio [Fernandes], essa gera\\xe7\\xe3o come\\xe7ou a perder a relev\\xe2ncia que tinha junto aos clientes. Porque a grande ideia desapareceu. Ent\\xe3o o que voc\\xea fazia tinha muito pouco valor, virava commodity. E a\\xed voc\\xea fala: Putz, n\\xe3o t\\xf4 afim disso, n\\xe3o.\\nVoc\\xea entende que voc\\xea anteviu um pouco isso em rela\\xe7\\xe3o aos seus contempor\\xe2neos? Eu acho que todo mundo tinha o mesmo n\\xedvel de informa\\xe7\\xe3o. Todo mundo sabia, mas poucos atuaram sobre isso. Isso n\\xe3o \\xe9 um processo brasileiro, \\xe9 um processo mundial. A gente via que as ag\\xeancias mundiais estavam perdendo as negocia\\xe7\\xf5es porque elas viraram commodity. E quando voc\\xea \\u2018commoditiza\\u2019 a ideia, o valor que voc\\xea recebe por ela \\xe9 muito baixo. Est\\xe1 todo mundo vivendo isso. Eu s\\xf3 achei que para mim n\\xe3o valia mais a pena.\\nAcho que \\xe9 razo\\xe1vel imaginar que o surf tenha tido um papel importante nessa sua decis\\xe3o, te ajudado a tomar uma decis\\xe3o t\\xe3o dif\\xedcil, que outros n\\xe3o conseguiram tomar. E queria falar do North Shore, onde est\\xe3o as ondas mais famosas do mundo, mas a maior parte dos mortais s\\xf3 conhece nos campeonatos, num determinado per\\xedodo onde aquilo vira uma situa\\xe7\\xe3o completamente. Como s\\xe3o os outros nove meses, passar um ano nesse lugar?\\xa0\\xc9 bem diferente. No primeiro ano, voc\\xea espera que aqueles dois, tr\\xeas meses ali cheguem r\\xe1pido porque aquilo ali realmente vibra. Depois de um ano, voc\\xea torce para aqueles 3 meses n\\xe3o aconte\\xe7am. Porque durante o ano \\xe9 vazio, \\xe9 tranquilo, \\xe9 f\\xe1cil. E \\xe9 uma vida absolutamente pacata. Voc\\xea leva seus filhos na escolinha, vai no \\xfanico supermercado que tem aqui, os vizinhos todos se conhecem. Existe uma comunidade de brasileiros expatriados que vieram para c\\xe1 pra surfar e est\\xe3o aqui h\\xe1 20, 30 anos. E \\xe9 uma turma muito legal, as pessoas se encontram se ajudam, \\xe9 muito, muito, melhor do que eu podia imaginar. \\xc9 uma vida absolutamente ligada \\xe0 natureza, ao esporte, ao ar livre e tem uma leveza das pessoas, uma atitude totalmente despretensiosa em rela\\xe7\\xe3o a tudo. O Hava\\xed \\xe9 uma aula de humildade. A primeira coisa que as ondas havaianas te ensinam \\xe9 a ser extremamente humilde. Do profissional ao cara mais novinho, a humildade \\xe9 a primeira coisa que aparece depois de um belo caldo que voc\\xea toma. Todo mundo tem medo das mesmas coisas, das mesmas ondas, e \\xe9 uma vida absolutamente tranquila. De novembro at\\xe9 final de janeiro, isso aqui fica realmente M\\xf4naco durante a F\\xf3rmula 1. Ent\\xe3o \\xe9 todo mundo na rua, voc\\xea encontra pessoas famosas no mercado, artistas de cinema, surfistas profissionais, todo mundo na praia. O Sean Penn \\xe9 nosso vizinho aqui. Quando ele come\\xe7ou a namorar a Charlize Theron, aquela atriz, a gente viu primeiro e sabia que estavam juntos antes de sair nas not\\xedcias. Aquele burburinho todo dura dois meses e depois voc\\xea torce para que acabe. \\xc9 uma vida muito gostosa com um grupo de pessoas simplesmente maravilhoso, que n\\xe3o procura colocar banca e isso ensina muita gente. Principalmente para quem vem de S\\xe3o Paulo, com aquela coisa do "eu tenho\\u201d, \\u201ceu fa\\xe7o\\u201d, \\u201ceu como o melhor japon\\xeas\\u201d, \\u201ctomo o melhor vinho\\u201d. \\xc9 t\\xe3o chocante a diferen\\xe7a. Isso tem feito bem para mim, pros meus filhos, pra minha mulher... \\xc9 um aprendizado maravilhoso para quem tem ainda essa ideia da gaiola dourada do hamster.\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/07/5f11015ec6dd1/marcelo-serpa-tripfm-mq.jpg; CREDITS=Bruno Lemos; LEGEND=O publicit\\xe1rio Marcello Serpa]\\nLEIA TAMB\\xc9M: Ou\\xe7a a entrevista de Marcello Serpa ao Trip FM em 2009\\nComo \\xe9 que a comunidade onde voc\\xea vive est\\xe1 avaliando o Trump? A\\xed na comunidade onde voc\\xea vive, de Oahu, especialmente do North Shore, \\xe9 uma tend\\xeancia mais conservadora ou mais anti-Trump?\\xa0O Hava\\xed inteiro \\xe9 democrata, mas \\xe9 um tipo de democrata institucionalizado. J\\xe1 os republicanos aqui quase n\\xe3o t\\xeam chance. Mas eu acho que a comunidade do surf \\xe9 extremamente conservadora. E deveria ser exatamente o contr\\xe1rio pela hist\\xf3ria do surf\\xa0nos anos 70, na contracultura, nos anos 50, era tudo contra alguma coisa. Hoje a cultura do surfe \\xe9 muito a favor das coisas. Eu vejo muito surfista, muito amigo, que \\xe9 Trump, que \\xe9 Bolsonaro, que \\xe9 pela dureza, pela a\\xe7\\xe3o forte, contra os gays, contra a viola\\xe7\\xe3o dos valores da fam\\xedlia. Isso \\xe9 muito forte no surf hoje e \\xe9 surpreendente para mim. Sempre foi e aqui no Hava\\xed n\\xe3o \\xe9 diferente. Ent\\xe3o a cultura surf\\xa0hoje \\xe9 uma cultura extremamente conservadora.\\nMachista tamb\\xe9m, n\\xe9?\\xa0Completamente machista. Uma das melhores capas da Trip que eu conhe\\xe7o s\\xe3o dois surfistas homossexuais na praia e na \\xe9poca eu falei assim: \\xe9 uma coisa que no surf parece que n\\xe3o existe, n\\xe3o existe o assunto, n\\xe9? Todo mundo \\xe9 macho. Eu adorei aquela capa, achei o m\\xe1ximo.\\nVoc\\xea teve o privil\\xe9gio de viver em duas cidades maravilhosas no Brasil, Rio de Janeiro e S\\xe3o Paulo, que t\\xeam, cada uma \\xe0 sua maneira, uma gra\\xe7a e uma sensualidade. Ent\\xe3o aquela pergunta que \\xe9 meio besta, mas \\xe9 inevit\\xe1vel: para al\\xe9m das pessoas e da fam\\xedlia, do que voc\\xea sente saudades?\\xa0Da brasilidade. Eu acho que o brasileiro tem PhD em rela\\xe7\\xf5es sociais e os americanos ainda est\\xe3o no jardim de inf\\xe2ncia. Podem ir na Lua, mas eles n\\xe3o sabem abra\\xe7ar. \\xc9 uma diferen\\xe7a muito grande. O brasileiro \\xe9 PhD em ternura, em rela\\xe7\\xf5es, em intimidade. Isso me faz uma falta absurda. Mas quando eu falo que eu sinto saudade da brasilidade \\xe9 de uma brasilidade que talvez esteja sendo amea\\xe7ada hoje. \\xc9 o que a gente falou sobre a polariza\\xe7\\xe3o, esse n\\xedvel de agressividade da sociedade brasileira. Esse autoritarismo, n\\xe3o do governo s\\xf3, \\xe9 um autoritarismo das pessoas. As pessoas falam muito da amea\\xe7a \\xe0 democracia como se a amea\\xe7a da democracia viesse de cima. A amea\\xe7a \\xe0 democracia come\\xe7a embaixo. Na maneira como as pessoas lidam com opini\\xe3o dos outros, com os outros. Esse autoritarismo est\\xe1 na base da sociedade brasileira hoje. E isso que est\\xe1 se perdendo, essa ternura, essa empatia, essa maneira pragm\\xe1tica de lidar um com o outro, de se dar bem, de entender, de conversar. Quando eu vou para o Brasil de f\\xe9rias eu fico impressionado com o n\\xedvel de viol\\xeancia e do autoritarismo que est\\xe1 permeando nas rela\\xe7\\xf5es sociais, as pessoas, as conversas, as decis\\xf5es. Ent\\xe3o eu fico um pouco preocupado. "Ah, a culpa \\xe9 do governo". N\\xe3o. A culpa \\xe9 da sociedade, que est\\xe1 se tornando extremamente autorit\\xe1ria, intransigente e intolerante. Ent\\xe3o eu tenho saudade de uma brasilidade que eu n\\xe3o estou vendo mais no Brasil. Isso para mim vai ser fator determinante na minha volta, se voltamos ou n\\xe3o. Porque o Brasil que eu tenho no meu cora\\xe7\\xe3o, que eu vivo, que eu amo, eu estou vendo ele amea\\xe7ado por esse tipo de comportamento. Eu n\\xe3o estou mais me reconhecendo nesse Brasil e isso me d\\xf3i profundamente.\\nTenho certeza que essa sua resposta vai calar profundo em muita gente. Mas quero fazer uma \\xfaltima pergunta. A impress\\xe3o que eu tenho \\xe9 que voc\\xea \\xe9 um cara bastante organizado, faz planejamento. Por exemplo, esse projeto de sair da propaganda, de vender a ag\\xeancia. Voc\\xea pensa nos seus 68 anos, em voc\\xea daqui uns dez anos? Se voc\\xea tivesse que se descrever, que retrato voc\\xea arriscaria?\\xa0Voc\\xea falou uma coisa muito boa, que eu sou planejado, mas o planejamento \\xe9 um pouco diferente disso. Eu n\\xe3o sou planejado. Eu ajo muito sobre os meus sentimentos, sobre meus instintos. E quando eu percebo meu instinto, talvez por ter feito an\\xe1lise tanto tempo, eu penso: \\u201cEu preciso fazer alguma coisa sobre isso\\u201d. A\\xed eu come\\xe7o a agir. Ent\\xe3o eu n\\xe3o come\\xe7o a planejar, eu come\\xe7o a agir sobre aquilo. Ent\\xe3o eu falo: "Vou ter que sair da ag\\xeancia\\u201d. Como \\xe9 que eu saio da ag\\xeancia, como \\xe9 que eu vou vender, como \\xe9 que eu fa\\xe7o isso? A\\xed come\\xe7a a agir. Demora um tempo, n\\xe3o \\xe9 uma decis\\xe3o r\\xe1pida. Parece mais planejado do que realmente \\xe9, \\xe9 pura intui\\xe7\\xe3o. Ent\\xe3o hoje para os 68 anos eu n\\xe3o tenho absolutamente nada planejado, eu n\\xe3o sei nem quanto tempo eu vou ficar aqui ainda. Eu s\\xf3 espero estar surfando ainda, pintando melhor do que eu pinto hoje, fazendo uma entrevista com voc\\xea e encontrando meus amigos. E eu n\\xe3o gostaria de estar muito longe daquela brasilidade que eu tenho, que eu carrego comigo. Mas eu n\\xe3o tenho ideia onde eu vou estar aos 68 anos.'