Dudu Bertholini: a moda precisa derrubar padroes

Published: June 9, 2020, 8:10 p.m.

b'O estilista e apresentador fala sobre mudanças urgentes no mundo da moda, questiona padrões e relembra a descoberta da sua sexualidade\\n \\n Dudu Bertholini \\xe9 uma das figuras mais ic\\xf4nicas da moda brasileira e, mais recentemente, da televis\\xe3o. Ele nasceu em S\\xe3o Paulo, mas passou a adolesc\\xeancia em Limeira, no interior do estado. Voltou para a capital para cursar a faculdade de moda, mercado que o consagrou. J\\xe1 atuou como stylist, figurinista, estilista e diretor criativo. Em 2003, fundou com uma amiga a pr\\xf3pria marca, a Neon, que em quase uma d\\xe9cada de exist\\xeancia o projetou como um dos criadores mais inovadores da moda nacional.\\nAl\\xe9m da carreira no mundo da moda, Dudu tornou-se tamb\\xe9m um comunicador. Ele integrou a bancada do Amor & Sexo, programa da TV Globo que exibiu sua \\xfaltima temporada no ano passado, onde p\\xf4de se posicionar com liberdade sobre temas ainda pontiagudos como sexualidade e g\\xeanero. E acaba de estrear a segunda temporada de N\\xf3s, os fashionistas, um s\\xe9rie no canal FashionTV na qual ele entrevista colegas de profiss\\xe3o sobre criatividade e documenta a moda brasileira.\\nEm conversa com o Trip FM, Dudu fala sobre a descoberta da sexualidade, seu casamento que reuniu mais de 300 convidados em uma videochamada e os desafios que a moda vai enfrentar com a pandemia. Ou\\xe7a o programa no Spotify, no play abaixo ou leia a entrevista completa.\\n[AUDIO=https://p.audio.uol.com.br/trip/2020/6/DuduBertolini.mp3; IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2020/06/5ed956056be25/1009x530x960x540x13x-4/dudu-bertholini-quarentena-covid-tripfm-social.jpg]\\nTrip.\\xa0Como est\\xe1 a vida de casado?\\nDudu Bertholini. Estou muito feliz com a minha vida de casado, em lua de mel. Para n\\xf3s foi uma data simb\\xf3lica porque, al\\xe9m de fazer o casamento, a gente entendeu isso como um momento super importante de troca de afeto e de conex\\xe3o entre pessoas que a gente ama muito. Em nenhum momento esquecemos toda a dor e o desafio que o mundo est\\xe1 passando \\xe0 nossa volta, mas a gente quis justamente que fosse o momento de troca de carinho, de reafirmar o amor. E diante de pessoas que s\\xe3o super importantes para a gente \\u2013 que no nosso caso s\\xe3o 300 \\u2013 mas, acredite, os convites ficaram prontos dois dias antes, ent\\xe3o n\\xe3o conseguimos convidar metade dos amigos que a gente queria, que eram importantes, acredita?\\xa0\\nVoc\\xea \\xe9 muito animado e muito alegre. Qual \\xe9 o segredo?\\xa0Eu procuro bastante essa anima\\xe7\\xe3o na minha vida. Mas vou confessar que essa \\xe9 uma semana em que estou me sentindo super fragilizado, mais sens\\xedvel, mais vulner\\xe1vel, por causa de toda essa loucura que est\\xe1 rolando no mundo \\xe0 nossa volta. Acho at\\xe9 que no momento desse isolamento, conseguir manter a nossa energia elevada e segurar a pr\\xf3pria onda j\\xe1 \\xe9 uma grande contribui\\xe7\\xe3o. E tudo bem para quem n\\xe3o est\\xe1 conseguindo, t\\xe1? Tem muita gente que n\\xe3o est\\xe1 conseguindo depois de tr\\xeas meses de confinamento. Mas eu acho que \\xe9 um exerc\\xedcio di\\xe1rio, de ver o lado bom das coisas, de ter um otimismo sem aliena\\xe7\\xe3o.\\xa0\\nMe lembro de acompanhar a sua carreira e voc\\xea estava sempre, de certa forma, nos bastidores. Claro que voc\\xea aparecia nos seus desfiles e nas revistas de moda, j\\xe1 era uma figura p\\xfablica. Mas \\xe9 outra coisa voc\\xea estar na maior vitrine do Brasil, botar a cara num programa como o Amor & Sexo, e expor sua vis\\xe3o de mundo. Toda vez que eu assistia ao programa prestava aten\\xe7\\xe3o na delicadeza da sua postura, que, no melhor sentido da palavra, \\xe9 uma coisa educada, refinada, sem fugir da contund\\xeancia. E esses temas ligados \\xe0 sexualidade, quest\\xf5es de g\\xeanero, ainda s\\xe3o tabus no Brasil, onde as pessoas s\\xe3o agredidas e assassinadas por causa disso. Voc\\xea precisou pensar nisso, teve ajuda da equipe de profissionais, ou simplesmente foi l\\xe1 e deixou rolar?\\xa0Foi uma s\\xe9rie de reflex\\xf5es. Quando a gente passa a atuar numa plataforma que tem tanto alcance e visibilidade, a nossa responsabilidade aumenta muito. "Grandes poderes v\\xeam com grandes responsabilidades" e ser um comunicador, ser um criador de imagem, ser o interlocutor de qualquer mensagem hoje, traz mais responsabilidade do que nunca. O tempo presente \\xe9 perfeito para entendermos o impacto das nossas palavras, das nossas mensagens. E estar num ve\\xedculo poderoso como a Rede Gobo aumenta essa responsabilidade. No entanto, o convite do Antonio Amancio e da Fernanda Lima, parceiros e amigos que me deram essa oportunidade, j\\xe1 foi porque eles entendiam que a minha vis\\xe3o de mundo estava alinhada com o que eles acreditavam tamb\\xe9m.\\nLEIA TAMB\\xc9M:\\xa0Fernanda Lima questiona os pr\\xf3prios privil\\xe9gios, empresta sua voz a diferentes causas e lida com as consequ\\xeancias dessas escolhas\\nO processo todo de constru\\xe7\\xe3o do programa \\xe9 bem interdisciplinar. As nossas reuni\\xf5es de pauta eram com todas as pessoas da equipe e, entre os jurados, a gente tinha uma troca enorme. O que eu aprendi, o que eu aprofundei por causa do discurso, da reflex\\xe3o. Imagine sentar numa bancada com Milly Lacombe, que \\xe9 uma das pensadoras mais potentes que a gente tem na contemporaneidade, com Djamila Ribeiro. Os meus amigos Edu Sterblitch, Jos\\xe9 Loreto, Mari Santos, s\\xe3o geniais. Cada um \\xe0 sua maneira, cada um no seu recorte. A Regina Navarro Lins aprofundou a minha vis\\xe3o sobre o relacionamento e sobre o mundo. Tudo isso elevou o n\\xedvel da discuss\\xe3o e da conversa, e foi de grande aprendizado. Mas j\\xe1 estava alinhado com minha maneira de ver o mundo.\\xa0\\nEu agrade\\xe7o demais quando voc\\xea coloca essa delicadeza, a palavra \\xe9 muito bonita. Ela n\\xe3o \\xe9 fragilidade, e n\\xe3o tem nada errado com fragilidade, mas parece que ela \\xe9 diferente. A gente tem que pensar como tornar acess\\xedveis informa\\xe7\\xf5es relevantes, porque se o discurso \\xe9 complicado, isso refor\\xe7a ainda mais a ideia de que esse problema n\\xe3o \\xe9 com as pessoas. "A LGBTQfobia n\\xe3o \\xe9 um problema meu porque eu n\\xe3o sou LGBTQ". N\\xe3o, pelo contr\\xe1rio! A transfobia e homofobia surgiram de voc\\xea, que n\\xe3o \\xe9 LGBTQ. Assim como o racismo \\xe9 um problema criado pela branquitude e n\\xe3o pelos negros. Ent\\xe3o a gente conseguir fazer com que esse discurso se torne mais pr\\xf3ximo, mais presente e mais acess\\xedvel. E ser acess\\xedvel n\\xe3o significa ser mais raso, \\xe9 o nosso grande desafio numa plataforma como a Globo.\\xa0\\n[QUOTE=1086]\\nA moda \\xe9 um setor que est\\xe1 sofrendo demais nesse momento. Eu quero ouvir de voc\\xea, que cresceu profissionalmente dentro da moda e hoje \\xe9 tamb\\xe9m professor, sobre o que est\\xe1 acontecendo com esse campo.\\xa0A maioria dos setores est\\xe1 sofrendo muito e drasticamente com a pandemia da Covid-19, e a moda sem d\\xfavida \\xe9 um dos que est\\xe3o sendo mais questionados e abalados diante dessa transforma\\xe7\\xe3o. Por\\xe9m, a gente est\\xe1 diante da maior oportunidade de mudan\\xe7a verdadeira que a moda j\\xe1 teve na hist\\xf3ria recente. A moda j\\xe1 n\\xe3o estava bem. A ideia de que estava tudo bem com a moda tem que ser combatida. Est\\xe1vamos num processo de acelera\\xe7\\xe3o cada vez maior, produzindo cada vez mais roupas, que estavam sendo liquidadas e descartadas com cada vez mais rapidez. Sa\\xedmos de duas para cinco cole\\xe7\\xf5es por ano: \\xe9 ver\\xe3o, inverno, alto ver\\xe3o, resort, enfim, cada vez mais demanda, num ciclo no qual liquidamos as roupas de ver\\xe3o antes da primeira flor desabrochar na primavera e vendemos roupas de inverno com um calor de 35 graus na rua. E mais uma vez privilegiando estruturas hegem\\xf4nicas: marcas grandes, que se dispunham atrav\\xe9s do marketing a fazer uma conversa com diferentes consumidores, mas que no fundo s\\xf3 visavam a venda. Se apropriando de discursos importantes do momento, correndo atr\\xe1s para agradar ao p\\xfablico alvo, mas sem ser uma parte positiva da mudan\\xe7a. Tudo isso j\\xe1 estava acontecendo.\\xa0\\xa0\\nE h\\xe1 tamb\\xe9m a nossa compreens\\xe3o de que a moda n\\xe3o \\xe9 sobre roupas. A moda \\xe9 sobre pessoas e j\\xe1 n\\xe3o fazia mais sentido sacrificar pessoas que ganham super pouco, trabalham em condi\\xe7\\xf5es an\\xe1logas \\xe0 escravid\\xe3o, e poluindo rios drasticamente, para que a gente compre uma cal\\xe7a jeans a pre\\xe7o de banana, alimentando um ciclo super predat\\xf3rio. Com a pandemia, todo mundo entrou num momento de recess\\xe3o econ\\xf4mica, com exce\\xe7\\xe3o das farm\\xe1cias ou servi\\xe7os digitais, mas todo mundo quer p\\xf4r a m\\xe3o na consci\\xeancia e entender quais eram as suas prioridades. Vamos ver ainda a quebra de grandes institui\\xe7\\xf5es, de marcas de moda, de modelos de neg\\xf3cios que n\\xe3o v\\xe3o sobreviver \\xe0 pandemia e que, diante de uma cobran\\xe7a maior do consumidor por produtos que estejam alinhados aos seus valores, n\\xe3o v\\xe3o aguentar a onda. \\xc9 um novo panorama, que n\\xe3o \\xe9 novo, j\\xe1 estava acontecendo, mas agora est\\xe1 se acelerando e especificando. Vai ter uma ascens\\xe3o de marcas menores e de designers mais autorais. Um incentivo ao que \\xe9 local ou brasileiro, porque a gente vai para uma recess\\xe3o econ\\xf4mica e tem que valorizar nossa m\\xe3o de obra. A gente vai ter medo de produtos que venham de fora. Vai ter uma s\\xe9rie de urg\\xeancias de valorizar o que \\xe9 feito pela gente, e a\\xed a gente vai ter uma cobran\\xe7a muito maior desses consumidores por produtos mais respons\\xe1veis, mais \\xe9ticos, mais transparentes, mais justos e que de forma nenhuma ratifiquem mensagens homof\\xf3bicas, transf\\xf3bicas, racistas, mis\\xf3ginas, classistas. Ent\\xe3o n\\xf3s estamos no meio de uma revolu\\xe7\\xe3o.\\xa0\\nEu estou totalmente de acordo e tor\\xe7o h\\xe1 muitos anos para que essa revolu\\xe7\\xe3o aconte\\xe7a. Mas eu tenho uma filha adolescente, e isso me d\\xe1 uma condi\\xe7\\xe3o de examinar a vida real muito de perto. Felizmente ela est\\xe1 formando uma consci\\xeancia bem legal e tem, por exemplo, uma vis\\xe3o sobre o car\\xe1ter nocivo do fast fashion, fala sobre isso, pensa sobre isso. Mas na hora que ela passa na frente de um lugar desse, \\xe9 como se ela fosse abduzida por for\\xe7as maiores do que a pr\\xf3pria consci\\xeancia, e ela fica completamente balan\\xe7ada. Ent\\xe3o a minha pergunta \\xe9 a seguinte: isso tudo o que voc\\xea fala faz um sentido absoluto dentro da l\\xf3gica do bom senso, mas voc\\xea acha que essa l\\xf3gica consegue vencer a for\\xe7a avassaladora do fast fashion, por exemplo?\\xa0Se n\\xe3o conseguir vencer esse sistema, nem mundo a gente vai ter para que outras realidades surjam. Basta da atrocidade predat\\xf3ria que vem acontecendo ano ap\\xf3s ano. Mesmo com o crescimento de uma consci\\xeancia mais sustent\\xe1vel, ainda vivemos um momento no qual os malef\\xedcios s\\xe3o muito maiores do que os benef\\xedcios. A Covid-19 pegou processos que poderiam demorar anos para acontecer, e est\\xe1 nos colocando diretamente diante dessas quest\\xf5es. E o mundo vai encontrar formas de fazer isso acontecer, eu acho que isso \\xe9 inevit\\xe1vel. Todos n\\xf3s passamos pelo mesmo paradoxo que a sua filha, a gente est\\xe1 sujeito a isso e eu me incluo. Por mais que eu tenha uma consci\\xeancia sustent\\xe1vel, hol\\xedstica, colaborativa, eu consumo outros produtos que n\\xe3o v\\xeam de boas proced\\xeancias. Eu conhe\\xe7o muitas pessoas que j\\xe1 est\\xe3o, de uma forma que eu n\\xe3o chamo de radical, mas de absurdamente leg\\xedtima com seus discursos, n\\xe3o fazendo concess\\xf5es. Eu deixo muito claro: o mais importante \\xe9 que a gente seja verdadeiro com aquilo que a gente \\xe9. Eu estou numa trajet\\xf3ria, atendo grandes marcas do mercado que tamb\\xe9m n\\xe3o est\\xe3o dentro dessa consci\\xeancia, ou que est\\xe3o parcialmente. Eu n\\xe3o compro tudo de produtores locais, fresco, org\\xe2nico, n\\xe3o estou nesse lugar ainda. E me vejo nesta contradi\\xe7\\xe3o por vezes. A dualidade que a sua filha enfrenta \\xe9 a dualidade que o mundo enfrenta. A gente diz: "Eu n\\xe3o compactuo com os meios de produ\\xe7\\xe3o que poluem o mundo", mas eu quero muito comprar esse jeans que custa menos de 10 reais, sendo que a gente sabe que um par de cal\\xe7a jeans consome uma m\\xe9dia de 11 mil litros de \\xe1gua pot\\xe1vel para ser feita, e que o azul dessa cal\\xe7a jeans possivelmente tingiu rios que nunca mais v\\xe3o ser recuperados. Ser leg\\xedtimo, aproximar os nossos discursos das nossas atitudes, \\xe9 o grande desafio do mundo.\\xa0\\nMas tamb\\xe9m de um lado otimista, eu vejo essas novas gera\\xe7\\xf5es, da qual a sua filha faz parte, j\\xe1 alinhadas com a contemporaneidade. Jovens de 10 at\\xe9 20 anos, super mais conscientes, muito mais \\xe0 vontade com as quest\\xf5es de g\\xeanero, de sexualidade. J\\xe1 n\\xe3o se perguntam, j\\xe1 n\\xe3o cobram de si a heterossexualidade ou demonizam a homossexualidade ou bissexualidade. Vejo essa gera\\xe7\\xe3o usando muito mais roupas vintage, roupas de brech\\xf3, roupas usadas ou mesmo upcycling, que \\xe9 quando se pega uma pe\\xe7a que j\\xe1 existe e interfere nessa pe\\xe7a com design para agregar valor a ela. Eu vejo essa nova gera\\xe7\\xe3o super proativa nesse sentido, o que me d\\xe1 muita esperan\\xe7a para os passos que vem pela frente.\\nLEIA TAMB\\xc9M:\\xa0Como o coronav\\xedrus infectou o modo como consumimos\\nN\\xe3o d\\xe1 para falar de cultura sem passar pela moda, que \\xe9 um vetor de cultura gigantesco. Ao mesmo tempo, quando se olha para mazelas da sociedade, tem uma contribui\\xe7\\xe3o muito grande da moda e da m\\xeddia na constru\\xe7\\xe3o de padr\\xf5es e de preconceitos. Nesse momento, o mundo inteiro est\\xe1 se repensando, sobre est\\xe9tica, sobre a necessidade de consumo e sobre a necessidade de se mostrar de uma determinada maneira para o outro. Que transforma\\xe7\\xe3o vai acontecer? A moda sai fortalecida ou enfraquecida de um trauma como uma pandemia?\\xa0Acabar com quaisquer padr\\xf5es \\xe9 um grande objetivo da moda do presente e do futuro. Todo padr\\xe3o \\xe9 excludente por natureza, porque ele exclui quem n\\xe3o pertence a ele. Todo mundo \\xe9 oprimido e sofre diante dos padr\\xf5es, mesmo quem est\\xe1 no topo dele, mas claro que os mais oprimidos sofrem muito mais. Quando a gente entende uma interseccionalidade de ra\\xe7a, cor, corpo, de todas essas caracter\\xedsticas, quanto mais elas se somam, mais dura \\xe9 essa opress\\xe3o. E, mesmo para quem atende a estes padr\\xf5es, a cobran\\xe7a em se manter dentro deles \\xe9 uma coisa super cruel. E a\\xed justamente a gente come\\xe7a entender que a moda \\xe9 um vetor muito complexo e amplo, e que depende muito da nossa vis\\xe3o para entender qual o resultado. Se a gente come\\xe7a a realmente cobrar uma moda que traga representatividade de corpos, de ra\\xe7as e de g\\xeaneros, de todas as nossas marcas e dos nossos ve\\xedculos de comunica\\xe7\\xe3o, a gente vai ver j\\xe1 neste presente e no futuro pr\\xf3ximo uma variedade muito maior de biotipos.\\xa0\\nPosso dizer por mim, que j\\xe1 nasci muito fora do padr\\xe3o: eu n\\xe3o me sentia representado nos meios de comunica\\xe7\\xe3o, e a descoberta da minha individualidade foi muito mais dif\\xedcil por isso. Como pode uma pessoa negra no Brasil, um pa\\xeds que \\xe9 majoritariamente negro, n\\xe3o se ver representado nas grandes publicidades, nas grandes revistas? Pessoas com defici\\xeancia n\\xe3o se v\\xeaem representadas em nenhum desses meios de comunica\\xe7\\xe3o e sequer t\\xeam a cidade adaptada para elas. Existe um conceito muito interessante de que a nossa individualidade \\xe9 constru\\xedda pela observa\\xe7\\xe3o do pr\\xf3ximo, para que a gente possa inclusive se descolar dela e entender a nossa maneira de ser. Quando a gente nasce, a gente olha para o mundo \\xe0 nossa volta, os exemplos que est\\xe3o ao nosso redor. Ent\\xe3o imagina voc\\xea crescer sem ver a sua cor de pele ser representada. Voc\\xea crescer sem ver a sua orienta\\xe7\\xe3o sexual ou seu g\\xeanero serem representados. Voc\\xea crescer sem o seu corpo, que n\\xe3o se parece com o de uma modelo da Victoria\'s Secrets, ser representado em nenhuma campanha de lingerie. Isso cria uma disforia terr\\xedvel e ratifica o bullying de outras pessoas, ratifica que opressores naturalizem essa opress\\xe3o. A gordofobia est\\xe1 longe ainda de ser reconhecida como um mal terr\\xedvel. Muitas pessoas reconhecem, mas ela ainda deveria ser levada a s\\xe9rio e combatida de uma forma muito mais ferrenha do que a gente combate agora.\\xa0\\nA gente entende que, se usarmos esse mesmo vetor para incentivar os estilos e as express\\xf5es individuais radicais, a gente vai ter um mundo muito mais livre. E entre essa liberdade eu j\\xe1 come\\xe7o colocando a quest\\xe3o bin\\xe1ria. Dividir tudo em homem e mulher, rosa e azul, j\\xe1 n\\xe3o dava certo pra mim. Eu pensava: "Que mundo \\xe9 esse que associa a sua genit\\xe1lia a uma s\\xe9rie de padr\\xf5es de comportamento?" E a moda tem muito a ver com isso e te diz quem que voc\\xea tem que ser. Portanto, eu digo: a moda do presente e do futuro n\\xe3o est\\xe1 aqui pra te dizer como voc\\xea tem que se parecer. Ela n\\xe3o est\\xe1 aqui pra dizer que roupa voc\\xea tem que usar. Ela est\\xe1 aqui pra te oferecer in\\xfameros caminhos para que voc\\xea aprimore o seu estilo pessoal e para que voc\\xea seja a melhor vers\\xe3o de voc\\xea mesmo.\\nComo foi a sua descoberta da sua sexualidade?\\xa0O mundo aponta para voc\\xea a sua orienta\\xe7\\xe3o sexual antes de voc\\xea conhec\\xea-la de verdade. Como naturalmente eu j\\xe1 tinha uma maneira delicada, e que trazia c\\xf3digos lidos como femininos, as pessoas me chamavam de gay e bicha antes de eu sequer entender que tinha desejo por homens. Acho que muitas pessoas passam por isso, inclusive por vezes h\\xe9teros que t\\xeam uma personalidade mais sens\\xedvel e que s\\xe3o apontados e questionados se n\\xe3o reproduzem os padr\\xf5es do macho alfa, competitivo ou garanh\\xe3o. Mas eu acho que meu primeiro crush foi o Paulo Ricardo, quando eu tinha cinco anos, mais ou menos. Eu olhava o Paulo Ricardo cantando e eu ficava apaixonado. J\\xe1 contei isso pra ele, ele rachou de rir tamb\\xe9m. Agradeci ele, inclusive, por ser esse crush.\\xa0\\nAcho que hoje, apesar de estarmos ainda no pa\\xeds que mais mata a LGBTs no mundo, mas gra\\xe7as a uma representatividade maior, que ainda tem que crescer, isso j\\xe1 est\\xe1 sendo mais naturalizado. Eu n\\xe3o tinha a Pabllo Vittar para ser f\\xe3 quando eu era crian\\xe7a, eu n\\xe3o tinha outros modelos. Hoje toda novela tem um casal gay. Mais uma vez com ressalvas, porque eles tamb\\xe9m criam vers\\xf5es muito caricatas e estereotipadas, mas tem uma representatividade maior, que teria me ajudado. Acho que no final da inf\\xe2ncia e come\\xe7o da adolesc\\xeancia eu j\\xe1 saquei que realmente gostava de homens, mas eu tinha uma culpa por isso. Porque o mundo \\xe0 minha volta passava essa mensagem, e eu olhava e sabia os estigmas que outras pessoas estavam sofrendo. E sabendo que a minha passabilidade branca, ou a mesmo educa\\xe7\\xe3o que eu tive e me colocaram num lugar de menos opress\\xe3o do que milh\\xf5es de outras hist\\xf3rias de LGBTs que a gente acompanha. Agrade\\xe7o demais \\xe0 minha fam\\xedlia. Meu pai sofreu, e tem aspectos com os quais ele sofre at\\xe9 hoje, quest\\xf5es que ainda n\\xe3o s\\xe3o 100% naturalizadas para ele, mas eles foram maravilhosos, me deram a chance de eu poder ser quem eu era. Se eles n\\xe3o me dessem eu seria tamb\\xe9m, assim como tenho milh\\xf5es de amigos que os pais n\\xe3o deixaram, e eles foram.\\nNo ano passado, em uma entrevista para a Trip, o Ney Matogrosso disse que nunca quis casar. Ele disse: "Eu continuo livre. Aparecem pessoas na minha vida que querem casar, e eu digo: porra gente, casar? Que pensamento atrasado esse de casar. Isso j\\xe1 vai eliminando as pessoas que aparecem na minha vida, porque as que querem casar j\\xe1 saem fora, eu n\\xe3o caso n\\xe3o". Por que diabos voc\\xea resolveu casar?\\xa0Ainda bem que eu n\\xe3o quis casar com ele, se n\\xe3o eu j\\xe1 tinha levado um fora. Eu quis casar porque eu estou super apaixonado, esse foi o principal motivo, obviamente. E porque, nesse processo da pandemia, onde s\\xf3 pensar no aumento de viol\\xeancia dom\\xe9stica aconteceu, nos coloca numa situa\\xe7\\xe3o de refletir sobre a barra que muita gente est\\xe1 passando de ter que ficar em casa junto. Aqui outros la\\xe7os se fortaleceram, porque a gente depende tanto um do outro\\u2013 nesse momento mais que nunca. No meu caso e do Gama, esses dois meses, que foram tamb\\xe9m de muita luta e de muita adapta\\xe7\\xe3o, fortaleceram demais o nosso amor, a nossa parceria, o nosso companheirismo, estar um pelo outro. E foi bem fulminante a nossa hist\\xf3ria: a gente se conheceu, se apaixonou e come\\xe7amos a morar juntos no segundo m\\xeas de namoro. A gente j\\xe1 falava que queria casar quando fizesse um ano de namoro, ficava se chamando de noivo. Ao mesmo tempo com ironia, porque eu mesmo nunca tinha estado numa igreja, e n\\xe3o entrei agora tamb\\xe9m.\\nNunca tive esse fetiche com o casamento ou com essa institui\\xe7\\xe3o do casamento, mas justamente pelo relacionamento estar numa sintonia t\\xe3o gostosa, a gente falava: "Quando fizer um ano a gente casa e pode se chamar de marido e marido". E a\\xed a data caiu justamente no meio da pandemia. Ao inv\\xe9s de cancelar, pensamos como poder\\xedamos fazer isso da maneira mais afetuosa poss\\xedvel. E foi assim. A gente n\\xe3o casou propriamente no cart\\xf3rio, e eu nem acho que seja essa a grande quest\\xe3o. Claro que o nosso casamento teve dan\\xe7a do fogo, show da Bianca Ex\\xf3tica e performances maravilhosas. A festa teve bundalel\\xea, teve de tudo, cada um na sua casa com seus drinks. Foi essa celebra\\xe7\\xe3o \\xe0 vida.\\xa0Eu j\\xe1 tinha sido casado, morado junto, mas eu nunca tinha efetivamente oficializado o matrim\\xf4nio dessa forma. E, desculpa Ney, mas \\xe9 muito bom, viu? Eu te recomendo repensar. Refor\\xe7ar la\\xe7os de afeto e de amor que sejam leg\\xedtimos est\\xe1 entre as grandes curas que o mundo precisa neste momento.\\nVoc\\xea acha que a hora que acabar a quarentena, que sair a vacina, a estupidez volta a se instalar ou a gente sai dessa hist\\xf3ria com algum grau de evolu\\xe7\\xe3o da humanidade?\\xa0Eu te devolvo com uma pergunta: o quanto voc\\xea est\\xe1 disposto a lutar para que o mundo n\\xe3o volte a ser o mesmo? Eu acho que a quest\\xe3o \\xe9 essa, n\\xe9? Se a gente quer que o mundo volte a ser o mesmo, a gente vai for\\xe7ar as engrenagens que nos trouxeram at\\xe9 aqui. Vamos sair lotando o shopping, comprando, comprando e comprando, tentando cada vez mais acumular bens para n\\xf3s mesmos. E vamos garantir assim a manuten\\xe7\\xe3o do poder nas m\\xe3os dos mesmos grupos, da mesma ra\\xe7a, dos mesmos corpos e das mesmas verdades. Voltar ao normal? Tava normal? Era normal? Jura mesmo que era normal como est\\xe1vamos antes? Ent\\xe3o se o mundo estava favorecendo voc\\xea a n\\xe3o mudar, agora ele est\\xe1 tendo uma chance maravilhosa de se perguntar. Quando eu vejo pessoas que falam "n\\xe3o vejo a hora de voltar ao normal", fico boquiaberto. Que normal \\xe9 esse que voc\\xea quer voltar a ser? O meu exerc\\xedcio, todos os dias, \\xe9 garantir que a gente n\\xe3o volte ao normal, ao antigo normal, e que a gente repense o que \\xe9 esse novo normal \\u2013 express\\xe3o que foi muito pol\\xeamica aqui. N\\xe3o d\\xe1 para fazermos a cartomante tentando prever esse futuro. Temos que tomar atitudes no presente para costurar um futuro que realmente promova essa mudan\\xe7a, sen\\xe3o a gente vai morrer num compartilhamento de telas pretas, num compartilhamento de ideias de solidariedade que v\\xe3o se esvair. A gente vai parar de compartilhar conhecimento gratuito de uma forma mais emp\\xe1tica. Vai parar de se preocupar com o nosso vizinho para saber se ele precisa da nossa ajuda para o supermercado. A gente quer parar com isso? Tudo bem, eu quero poder estar com voc\\xea, e a gente bater esse papo presencialmente. Tomara que a gente possa fazer isso logo, mas eu realmente penso que a gente est\\xe1 numa luta, entre tantas, para garantir que as coisas n\\xe3o voltem a ser as mesmas.\\nSeu trabalho sempre teve uma coisa de cores muito forte. E uma coisa que eu pessoalmente amo \\xe9 a t\\xfanica. Um dos meus maiores \\xeddolos na m\\xfasica, no showbiz e na cultura brasileira \\xe9 o Tim Maia, e ele adorava uma t\\xfanica. Quando voc\\xea apareceu com a Neos e essas t\\xfanicas coloridas, pensei que voc\\xea e Tim Maia deveriam ter se conhecido, iam se identificar demais.\\xa0Ao usar a t\\xfanica, que eu chamo de caft\\xe3, que \\xe9 essa t\\xfanica comprida, v\\xe1rias pessoas me associam a diferentes personalidades, mas ningu\\xe9m nunca tinham me falado do Tim Maia, ent\\xe3o adorei. Eu sou f\\xe3 do Tim Maia, vou tentar at\\xe9 mentalizar na sexta-feira: eu e Tim Maia e uma arara de caft\\xe3. O caft\\xe3 tem muitas origens, porque basicamente s\\xe3o dois quadrados de tecido costurados. Depois de criar o tecido, no tear, o ser humano fechou ele na forma de caft\\xe3. Vem do Egito Antigo at\\xe9 hoje, na \\xc1frica, nas culturas mu\\xe7ulmanas no Oriente M\\xe9dio. Mas n\\xe3o acho que isso \\xe9 a melhor resposta para isso. Voc\\xea tem que p\\xf4r um. Sugiro que saia s\\xf3 de caft\\xe3, sem nem cueca, para voc\\xea ver o que \\xe9 a liberdade. Eu passo o ver\\xe3o sem cal\\xe7as, s\\xf3 sentindo o ventinho. \\xc9 realmente uma pe\\xe7a super confort\\xe1vel e eu j\\xe1 usei caft\\xe3 no caf\\xe9 da manh\\xe3 e j\\xe1 fui no baile de gala, tapetes vermelhos. Poucas pe\\xe7as permitem essa versatilidade. Uso desde 2003. Meu uso de caft\\xe3 j\\xe1 \\xe9 quase maior de idade, e continua firme e forte.'