Dra. Albertina Duarte: Sexo por migalha de afeto nao vale

Published: Oct. 22, 2021, 11 p.m.

b'A ginecologista fala a sexualidade dos adolescentes, pobreza menstrual e o atendimento médico durante a ditadura\\n \\n Com mais de vinte mil partos realizados e passados quarenta anos de formada, a Dra. Albertina Duarte Takiuti h\\xe1 muito tempo deixou uma inf\\xe2ncia pobre para se tornar uma das ginecologistas mais reconhecidas do pa\\xeds. Quando crian\\xe7a, essa portuguesa filha de um pai pedreiro e uma m\\xe3e analfabeta veio com a fam\\xedlia ao Brasil com a esperan\\xe7a de abandonar o governo autorit\\xe1rio de Ant\\xf3nio Salazar. A verdade \\xe9 que aqui ela enfrentou uma nova ditadura, e em seu consult\\xf3rio passou a atender mulheres torturadas pelo regime militar: costurou mamilos arrancados e fez cirurgias sem poder contar sequer com o banco de sangue.\\nA morte e a vida fizeram parte de sua hist\\xf3ria desde muito cedo: ainda em Portugal, ajudava a tia parteira e corria para atender qualquer pessoa que precisasse de um curativo. Com sete anos prometeu ao irm\\xe3o mais novo que acabara de levar um coice que iria cuidar dele quando se tornasse m\\xe9dica. Ele n\\xe3o resistiu aos ferimentos e morreu, mas ela seguiu com o combinado. Estudou, ganhou uma bolsa em uma escola particular de S\\xe3o Paulo e provou que a m\\xe3e, que pregava "pobre n\\xe3o faz medicina\\u201d, estava errada.\\nMais tarde, como coordenadora do Programa de Sa\\xfade da Adolescente da Secretaria da Sa\\xfade de S\\xe3o Paulo, foi respons\\xe1vel por reduzir em 55% a gravidez de meninas com idade entre 10 e 19 anos. Al\\xe9m disso, passou a chefiar o Ambulat\\xf3rio de Ginecologia da Adolesc\\xeancia do Hospital das Cl\\xednicas, e tamb\\xe9m atende em consult\\xf3rio particular \\u2013 seus dias geralmente terminam \\xe0s duas da madrugada, isso quando n\\xe3o h\\xe1 alguma paciente em trabalho de parto.\\nNada, no entanto, a faz perder o bom humor, nem mesmo o recente veto do presidente Jair Bolsonaro \\xe0 distribui\\xe7\\xe3o de absorventes a mulheres em situa\\xe7\\xe3o de vulnerabilidade, projeto que ela sempre defendeu. Em entrevista para o Trip FM, sempre sorridente, Albertina ainda fala sobre pornografia e a sexualidade dos jovens. Ou\\xe7a o programa no Spotify, no play nesta reportagem ou leia um trecho da entrevista a seguir.\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2021/10/6171ada307dae/trip-fm-doutora-albertina-duarte-mh.jpg; CREDITS=Divulga\\xe7\\xe3o; LEGEND=Dra. Albertina Duarte; ALT_TEXT=Dra. Albertina Duarte]\\nTrip. Eu queria que voc\\xea contasse das dificuldades e tamb\\xe9m das belezas de vir de uma fam\\xedlia humilde e de um pa\\xeds como Portugal. Como a senhora fez no in\\xedcio?\\nDra. Albertina Duarte. Eu sou uma imigrante e tenho muito orgulho de ter sido pobre. Minha m\\xe3e n\\xe3o sabia ler e hoje ela tem quatro filhos que escreveram livros. Em Portugal eu j\\xe1 sabia que seria m\\xe9dica. Acompanhava a minha tia que era parteira, n\\xe3o participava, porque era crian\\xe7a, mas carregava a \\xe1gua quente. E gostava muito de fazer curativos. Ela ia junto e eu fazia os curativos. Quando chego ao Brasil, o meu irm\\xe3o tem um acidente com um cavalo, \\xe9 operado muito tarde e morre. Enquanto ele esperava socorro eu dizia que seria m\\xe9dica e trataria ele. A minha rela\\xe7\\xe3o com a vida e a morte sempre foi muito forte. Minha m\\xe3e dizia que pobre n\\xe3o fazia medicina, mas eu respondia que era inteligente. Ganhei uma bolsa e fui estudar em um dos col\\xe9gios mais ricos da minha \\xe9poca.\\nConforme o \\xe2ngulo que n\\xf3s olhamos, o universo feminino melhorou muito: o movimento feminista ganhou espa\\xe7o. Mas, por outro lado, uma mulher ser for\\xe7ada a pegar jornal velho para usar como absorvente deixa a impress\\xe3o que andamos para tr\\xe1s. Voc\\xea, que todos os dias sente o pulso das mulheres, acha que estamos andando para tr\\xe1s ou para frente?\\xa0Eu tenho medo de que estejamos andando para tr\\xe1s. Eu tive muito orgulho de ajudar a desenhar a sa\\xfade da mulher dentro do SUS, entendendo que a mulher deve ter sa\\xfade em todas as fases da vida. Eu venho lutando a muito tempo pela dignidade \\xedntima. Uma mulher n\\xe3o pode sofrer bullying porque est\\xe1 escorrendo sangue pela perna ou porque molhou as suas roupas. Eu vejo dois mundos sempre, pois atendo no consult\\xf3rio e na rede p\\xfablica. J\\xe1 tirei p\\xe3o, papel\\xe3o e peda\\xe7o de cobertor da vagina das mulheres. Um absorvente n\\xe3o custa nada comparado ao que voc\\xea pode dar de autoestima. Isso al\\xe9m de saber que uma a cada quatro meninas falta na escola porque est\\xe1 menstruada. \\xc9 um problema de sa\\xfade p\\xfablica.\\nA gente sabe que mesmo as camadas menos favorecidas t\\xeam acesso a algum tipo de informa\\xe7\\xe3o: s\\xe3o mais smartphones do que pessoas hoje no Brasil. D\\xe1 para falar ainda que gravidez entre jovens \\xe9 falta de conhecimento?\\xa0Eu adoro responder essa pergunta. N\\xf3s temos o nascimento de 52 crian\\xe7as filhas de m\\xe3es adolescentes por hora. \\xa0A cada 21 minutos uma crian\\xe7a de 14 anos \\xe9 m\\xe3e. Nos anos de 1990 n\\xf3s fizemos uma pesquisa que revelou que 90% dos adolescentes conheciam m\\xe9todos anticoncepcionais, mas 70% n\\xe3o usavam na primeira rela\\xe7\\xe3o. Qual foi a discuss\\xe3o: a menina tinha medo de n\\xe3o agradar e o menino medo de falhar. O problema n\\xe3o \\xe9 informa\\xe7\\xe3o, \\xe9 negocia\\xe7\\xe3o. Uma menina pode ter todas as informa\\xe7\\xf5es, mas na hora de dizer que ela n\\xe3o ter\\xe1 rela\\xe7\\xe3o sem preservativo, ela precisa ter autoestima e autoconfian\\xe7a para gerar o autocuidado. Para o menino, de que adiante saber usar o preservativo se ele tem medo de falhar, de usar o preservativo e n\\xe3o ter o melhor desempenho? Isso em todas as classes sociais. A mulher tem uma quest\\xe3o comum ao g\\xeanero que \\xe9 p\\xe9ssima: o medo de n\\xe3o agradar o parceiro. Olha que dor. Uma menina de 14 anos que se julga feia n\\xe3o vai dizer que n\\xe3o transa sem camisinha. A gente precisa sair desse lugar, n\\xe3o \\xe9 informa\\xe7\\xe3o. \\xc9 habilidade de negociar com o parceiro e colocar limite.\\nAs mulheres foram t\\xe3o reprimidas durante tanto tempo que isso pode ter gerado um movimento pendular. Est\\xe1 acontecendo mesmo isso, esse exagero de liberdade?\\xa0Come\\xe7amos a receber muitas meninas perguntando sobre teste de DNA. Isso assustou um pouco. Os adolescentes me contam muita coisa. Uma das situa\\xe7\\xf5es \\xe9 a t\\xe1bua do sexo, no baile funk: as meninas ficam de costas, sem calcinha, e os meninos v\\xe3o passando. \\xc9 algo que extrapola para a classe m\\xe9dia tamb\\xe9m \\u2013 jovens experimentando com v\\xe1rios parceiros em uma noite. J\\xe1 n\\xe3o \\xe9 mais s\\xf3 beijar. Eles me contam e ficam me olhando, esperando aprova\\xe7\\xe3o. Eu pergunto assim: \\u201cComo voc\\xea se sentiu, foi bom?". A resposta geralmente \\xe9 negativa. Se os pais e as m\\xe3es soubessem das coisas que eu escuto... H\\xe1 dias em que preciso fazer terapia. Com toda a minha idade, tem coisas que eu n\\xe3o acredito que estou ouvindo. A minha fala \\xe9: "Todo o afeto, toda a rela\\xe7\\xe3o sexual precisa colocar para cima, deixar mais forte. Se voc\\xea precisa pagar ped\\xe1gio, aceitar migalhas de afeto, a\\xed n\\xe3o vale a pena". Quando eu falo migalha, tem gente que come\\xe7a a chorar.'