Christian Dunker: BBB, Bolsonaro e saude mental

Published: Feb. 26, 2021, 11 p.m.

b'Dono de um canal no YouTube com mais de 250 mil inscritos, Christian Dunker usa a psicanálise para falar de televisão à política brasileira\\n \\n Quando Christian Dunker voltou do seu p\\xf3s-doutorado na Inglaterra, em 2001, tinha clara a ideia de que se entendia muito de psican\\xe1lise, mas pouco sobre Brasil. Esse retorno foi marcado pela vontade de interpretar o Brasil atrav\\xe9s da cultura do condom\\xednio, um conceito que ele criou e escreveu em seu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros, finalista do pr\\xeamio Jabuti em 2016.\\xa0O termo cunhado pelo autor diz sobre como a privatiza\\xe7\\xe3o do espa\\xe7o p\\xfablico transforma a pr\\xf3pria vida em formas de condom\\xednio, com seus regulamentos, s\\xedndicos, gestores e muros, criando uma desordem que ser\\xe1 objeto de a\\xe7\\xe3o cl\\xednica, mas tamb\\xe9m biopol\\xedtica.\\nNo canal do YouTube \\u201cFalando nisso\\u201d, Christian aborda temas que fazem liga\\xe7\\xe3o direta com a psican\\xe1lise, como filmes, livros, situa\\xe7\\xf5es do cotidiano, pol\\xedtica e hist\\xf3ria. A inten\\xe7\\xe3o \\xe9 democratizar o acesso \\xe0 psican\\xe1lise aos mais de 250 mil inscritos, sair dos muros acad\\xeamicos e cativar leigos.\\xa0\\xa0\\nEm entrevista ao Trip FM, Dunker fala sobre a sa\\xfade mental p\\xfablica, a postura do presidente Jair Bolsonaro e a pol\\xeamica rejei\\xe7\\xe3o da cantora Karol Conk\\xe1 no Big Brother Brasil.\\xa0Ou\\xe7a o programa no\\xa0Spotify, no play abaixo ou leia um trecho da entrevista a seguir.\\xa0\\n[AUDIO=https://p.audio.uol.com.br/trip/2021/2/ChristianDunkerPODCAST.mp3; IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2021/02/603959356aa18/christian-dunker-bbb21-bolsonaro-psicanalise-violencia.jpg]\\nTrip. Eu queria que voc\\xea explicasse para quem tem menos intimidade com o tema o que \\xe9 a psican\\xe1lise, para que ela serve e de onde ela vem.\\xa0\\nChristian Dunker. \\xa0A psican\\xe1lise \\xe9 uma forma de tratamento do sofrimento humano pela palavra. Ela foi inventada por Freud no come\\xe7o do s\\xe9culo 19 e envolve entender de onde vieram os nossos sintomas, as nossas inibi\\xe7\\xf5es, os nossos pensamentos recorrentes e aquilo que nos gera inquietude. \\xc9 uma forma de tratamento psicol\\xf3gico, de psicoterapia, pois envolve abordar tudo isso a partir do processo de lembran\\xe7a, mas tamb\\xe9m do processo de rela\\xe7\\xe3o entre o analista e o paciente. Ent\\xe3o \\xe9 como se fosse uma pesquisa, uma viagem, na qual coisas v\\xe3o sendo descobertas, novas perguntas v\\xe3o sendo feitas. A gente poderia dizer que a psican\\xe1lise tem uma orienta\\xe7\\xe3o dupla: por um lado ela procura reduzir o sofrimento das pessoas \\u2013 o sofrimento mental, ps\\xedquico \\u2013 e curar os sintomas, mas por outro ela tamb\\xe9m \\xe9 uma forma de tornar a vida mais interessante, tornar nossa presen\\xe7a com os outros mais intensa e fazer valer uma certa excel\\xeancia no viver.\\xa0\\xa0\\nLEIA TAMB\\xc9M: D\\xe1 pra manter a sa\\xfade mental durante a pandemia?\\nN\\xe3o tem como a gente n\\xe3o falar de Big Brother Brasil e da elimina\\xe7\\xe3o de Karol Conk\\xe1, que teve a maior rejei\\xe7\\xe3o da hist\\xf3ria do programa, palavra que por si s\\xf3 j\\xe1 carrega um peso. Queria ouvir a sua opini\\xe3o sobre esse processo que tomou conta dessa artista. O que aconteceu exatamente com essa menina exposta \\xe0quelas condi\\xe7\\xf5es? O Big Brother \\xe9 um experimento, \\xe9 uma brincadeira, mas uma brincadeira em torno de algo que organiza a l\\xf3gica nas nossas rela\\xe7\\xf5es, que \\xe9 a exclus\\xe3o. Voc\\xea n\\xe3o est\\xe1 l\\xe1 para ser bacana, voc\\xea est\\xe1 l\\xe1 para resistir a ser expulso e rejeitado. Isso est\\xe1 na empresa, est\\xe1 na educa\\xe7\\xe3o, est\\xe1 no que a gente chama de universo da competi\\xe7\\xe3o. Ent\\xe3o voc\\xea est\\xe1 ali vendo e rindo de algo que te afeta e que te faz muito mal. O que acontece \\xe9 que no caso de Karol Conk\\xe1 isso exagerou, ent\\xe3o o princ\\xedpio da coisa ficou t\\xe3o n\\xedtido que eu repudio. E repudio o fato de antes estar gostando. Mas agora que aparece de uma forma t\\xe3o cristalina eu tenho que me afastar, colocando em marcha o processo do cancelamento.\\n[QUOTE=1165]\\nVoc\\xea s\\xf3 cancela quem voc\\xea amou antes. Voc\\xea cancela porque criou uma imagem a partir de um sistema de ilus\\xf5es e identifica\\xe7\\xf5es. Voc\\xea acha que \\xe9 o dono daquela imagem, mas n\\xe3o \\xe9. Ent\\xe3o o cancelamento \\xe9 muito mais a descoberta de um dado das suas ilus\\xf5es, da sua incoer\\xeancia, do que o cara que te traiu. Porque voc\\xea acha que as pessoas s\\xe3o unidimensionais e, se voc\\xea colocar uma c\\xe2mera de um certo \\xe2ngulo, vai encontrar o pior de qualquer um. Voc\\xea v\\xea essa contradi\\xe7\\xe3o, ela \\xe9 eliminada pelo nosso funcionamento imagin\\xe1rio. A\\xed existe um outro cap\\xedtulo, que entra nessa disputa com um certo conhecimento de como funcionam grupos desse tipo e fazendo uma fun\\xe7\\xe3o que a gente conhece, que \\xe9 o bully, o valent\\xe3o, aquele cara que deixa todo mundo com medo. E uma vez que a pessoa t\\xe1 com medo, ela v\\xea ele fazendo uma coisa errada e n\\xe3o fala nada, e acaba empoderando esta figura. A realidade de quarentena nos aproximou do programa porque estamos todos vivendo o nosso Big Brother particular. E quando a gente v\\xea ela agindo dessa maneira, acaba reconhecendo a agressividade de intimida\\xe7\\xe3o, de viol\\xeancia que est\\xe3o associados com a vida em estado de confinamento.\\n[IMAGE=https://revistatrip.uol.com.br/upload/2021/02/603959418bf85/christian-dunker-bbb21-psicanalise-violencia.jpg; CREDITS=; LEGEND=; ALT_TEXT=]\\n[QUOTE=1166]\\nA Karol Conk\\xe1 representa uma esp\\xe9cie de colapso de um conjunto de narrativas sobre identidades. Porque se a gente olha de um certo ponto de vista, ela \\xe9 uma mulher, Lucas um homem. Um homem contra uma mulher, o que neste pa\\xeds significa uma prerrogativa para mulher. Mas ela \\xe9 uma mulher rica, famosa e poderosa, ent\\xe3o muda a chave, \\xe9 algu\\xe9m rico contra o Lucas, que \\xe9 perif\\xe9rico, algu\\xe9m que n\\xe3o tem os c\\xf3digos, que n\\xe3o consegue se ligar muito bem. Ele est\\xe1 tentando jogar, mas deixa muito claro as regras que ele quer p\\xf4r em curso. Voc\\xea vai variando, n\\xe9? Uma mulher negra exercendo viol\\xeancia sobre um homem negro. Isso \\xe9 racismo? Ser\\xe1 que a\\xed estamos falando de racismo estrutural, aquele que toca a todos de forma transversal? Veja o curto circuito em que, na verdade, ela aparece numa forma que a gente n\\xe3o est\\xe1 acostumado. Essa conversa precisa de uma reformula\\xe7\\xe3o, a pensar a guerra das identidades a partir de personagens unidimensionais. A causa gay contra a causa queer, contra a causa feminista, contra o feminismo negro, contra o feminismo perif\\xe9rico. Como \\xe9 que a gente junta tudo isso? O que est\\xe1 em jogo nessa trama \\xe9 muito mais complexo do que esse algu\\xe9m que est\\xe1 num lugar privilegiado e o outro est\\xe1 como v\\xedtima sofrendo nas m\\xe3os dos outros. A gente precisa mudar essa gram\\xe1tica da v\\xedtima e do carrasco, porque ela \\xe9 parte do cancelamento, da lacra\\xe7\\xe3o, \\xe9 parte do negacionismo cient\\xedfico. Formamos, assim, um conjunto onde as oposi\\xe7\\xf5es se desfazem, onde as polariza\\xe7\\xf5es mais simples ficaram suspensas. Esse \\xe9 o lado legal do epis\\xf3dio da Karol Conk\\xe1.\\nEu quero virar a lente para outra situa\\xe7\\xe3o que parece ter todas as caracter\\xedsticas de uma patologia grave, que \\xe9 o ocupante da cadeira m\\xe1xima da Rep\\xfablica, nosso presidente, Jair Bolsonaro. Qual \\xe9 a patologia ali, Christian? Se \\xe9 que voc\\xea entende que h\\xe1 algo.\\xa0Olha, existem algumas hip\\xf3teses sobre o funcionamento do personagem, mas eu diria que isso \\xe9 menos importante do ponto de vista dos efeitos que ele acaba criando do que o que a gente chama de discurso Bolsonarista. O personagem, que administra esse discurso, cria o que eu chamaria de uma patologia social. N\\xe3o \\xe9 porque ele seja excepcionalmente louco, excepcionalmente perverso, que ele sofra de uma histeria grave, que ele \\xe9 insalubre, \\xe9 pela forma como ele consegue aliciar nas pessoas o que elas t\\xeam de pior. \\xc9 a forma como ele consegue montar uma coisa que Freud chamava de uma patologia artificial, que \\xe9 ir l\\xe1 e dizer assim: \\u201cVoc\\xea n\\xe3o tem \\xf3dio por algum tipo de estrangeiro? Estranho? Diferente de voc\\xea? Vamos amplificar esse \\xf3dio? Vamos dirigir ele para a figura? Vamos criar uma figura comunista? Vamos criar o petista?\\u201d.\\nUma caracter\\xedstica desse personagem \\xe9 a sua autenticidade e ele realmente \\xe9 um caso muito interessante, porque ele n\\xe3o est\\xe1 mentindo. Ele est\\xe1 um pouco como Big Brother, nos mostrando como a gente se ilude, como a gente acha que n\\xe3o \\xe9 ele. \\u201cEle vai manter a economia porque ele est\\xe1 falando do Ipiranga. Olha s\\xf3 o Guedes. Voc\\xea est\\xe1 se enganando, voc\\xea sabe que n\\xe3o \\xe9 isso\\u201d. Assim como: \\u201cEsse neg\\xf3cio de armas, viol\\xeancia, \\xe9 s\\xf3 para campanha, quando ele ganhar vai ser diferente\\u201d. Veja, no que ele est\\xe1 se baseando? Em ilus\\xf5es que ele cria? N\\xe3o, nas suas ilus\\xf5es. Ele est\\xe1 jogando com o seu sistema de ilus\\xf5es e isso \\xe9 extremamente devastador, porque ele vai at\\xe9 o nosso sistema de afetos dentro da fam\\xedlia, dentro das nossas refer\\xeancias simb\\xf3licas. Tanto faz se o que ele disse \\xe9 verdadeiro ou n\\xe3o, se \\xe9 bom ou n\\xe3o. Os argumentos que ele levanta t\\xeam a ver com a patologia espec\\xedfica, \\xe9 dividir a nossa refer\\xeancia simb\\xf3lica. Ent\\xe3o \\xe9 um discurso que, por exemplo, vai dar poder e legitima\\xe7\\xe3o indireta para a viol\\xeancia sobre quem tem menos poder. Essa hist\\xf3ria de atacar os quilombolas, de ser mis\\xf3gino, \\u201cmas \\xe9 o jeito tio do churrasco e tal\\u201d. Essa \\xe9 a mensagem daquele inconsequente, aquela que s\\xf3 acredita na palavra dele e acha que as palavras s\\xe3o feitas, assim, de fuma\\xe7a. Mas o que vai acontecer l\\xe1 no Brasil profundo vai ser o homem que vai pegar isso e se autorizar para bater em uma mulher. Vai ser o rico que, atrav\\xe9s disso, vai se autorizar para excluir o pobre.\\xa0Essa capilariza\\xe7\\xe3o da viol\\xeancia est\\xe1 acontecendo e ela est\\xe1 acontecendo segundo uma aprova\\xe7\\xe3o gozosa do personagem.\\n[QUOTE=1167]\\nEnt\\xe3o, do ponto de vista cl\\xednico, parece ser algu\\xe9m que o Lacan faria duas afirma\\xe7\\xf5es curiosas: \\u201cO pior diagn\\xf3stico que h\\xe1 \\xe9 anormalidade, porque esse n\\xe3o tem cura\\u201d; e \\u201ca gente deve recusar a psican\\xe1lise aos canalhas\\u201d. Porque o canalha, quando vem para an\\xe1lise, come\\xe7a a descobrir do que \\xe9 feita a canalhice dele e ele vira um bobo. Ele vira uma pessoa d\\xe9bil, uma pessoa sem personalidade. No fundo, se eu tivesse que recorrer a um diagn\\xf3stico, ele \\xe9 um canalha, mas n\\xe3o no sentido do grande mal\\xe9fico, e sim da pessoa limitada, que n\\xe3o consegue se p\\xf4r em d\\xfavida, que n\\xe3o consegue entender o que \\xe9 um lugar simb\\xf3lico, n\\xe3o consegue entender o que \\xe9 representar. \\xc9 algu\\xe9m assim, limitado. Uma pessoa muito, muito simplificada do ponto de vista ps\\xedquico.\\xa0\\nO SUS tem sido muito elogiado por ser uma rede p\\xfablica \\xfanica no mundo, mas, por outro lado, parece que no \\xe2mbito da sa\\xfade mental h\\xe1 muitas falhas e quest\\xf5es a serem abordadas. Como est\\xe1 a sa\\xfade mental p\\xfablica?\\xa0A gente vive uma crise de sa\\xfade mental que \\xe9 anterior \\xe0 pandemia e ela se aprofunda vigorosamente, tanto pela dificuldade de fazer atendimento por telas e\\xa0da prepara\\xe7\\xe3o do setor p\\xfablico para isso, quanto pelo fato de que nessa administra\\xe7\\xe3o a sa\\xfade mental vem enfrentando\\xa0desmontes, desaparelhamentos, parasitagens. Havia uma debilita\\xe7\\xe3o do sistema pra enfrentar aquilo que j\\xe1 estava ruim. Hoje se fala na volta do eletrochoque, no retorno de interna\\xe7\\xf5es em escala patrocinadas por certas associa\\xe7\\xf5es entre Estado e Igreja, ou seja, o tratamento moral do sofrimento ps\\xedquico, que \\xe9 uma coisa pr\\xe9-Freud, de achar que seu sofrimento ps\\xedquico \\xe9 falta de Deus, de f\\xe9, de Cristo no cora\\xe7\\xe3o. Isso \\xe9 uma regress\\xe3o que s\\xf3 piora o problema, que introduz a culpa individualizada como a g\\xeanese do problema, que legitima a pr\\xe1tica de viol\\xeancia com interna\\xe7\\xf5es compuls\\xf3rias. Est\\xe1 tudo errado no momento em que a gente mais precisava disso. O que se salvou foi a organiza\\xe7\\xe3o dos psic\\xf3logos e psicanalistas, que come\\xe7aram a fazer movimentos para tornar a sa\\xfade mental mais acess\\xedvel\\xa0para as pessoas, mas em n\\xedtido confronto com a pol\\xedtica de estado.'