Bruxas nao existem, de Moacyr Scliar

Published: April 28, 2020, 10:42 p.m.

b'Quando eu era garoto, acreditava em bruxas, mulheres malvadas que passavam o tempo todo maquinando coisas perversas. Os meus amigos tamb\\xe9m acreditavam nisso. A prova para n\\xf3s era uma mulher muito velha, uma solteirona que morava numa casinha caindo aos peda\\xe7os no fim de nossa rua. Seu nome era Ana Cust\\xf3dio, mas n\\xf3s s\\xf3 a cham\\xe1vamos de "bruxa".\\n\\nEra muito feia, ela; gorda, enorme, os cabelos pareciam palha, o nariz era comprido, ela tinha uma enorme verruga no queixo. E estava sempre falando sozinha. Nunca t\\xednhamos entrado na casa, mas t\\xednhamos a certeza de que, se fiz\\xe9ssemos isso, n\\xf3s a encontrar\\xedamos preparando venenos num grande caldeir\\xe3o.\\n\\nNossa divers\\xe3o predileta era incomod\\xe1-la. Volta e meia invad\\xedamos o pequeno p\\xe1tio para dali roubar frutas e quando, por acaso, a velha sa\\xeda \\xe0 rua para fazer compras no pequeno armaz\\xe9m ali perto, corr\\xedamos atr\\xe1s dela gritando "bruxa, bruxa!".\\n\\nUm dia encontramos, no meio da rua, um bode morto. A quem pertencera esse animal n\\xf3s n\\xe3o sab\\xedamos, mas logo descobrimos o que fazer com ele: jog\\xe1-lo na casa da bruxa. O que seria f\\xe1cil. Ao contr\\xe1rio do que sempre acontecia, naquela manh\\xe3, e talvez por esquecimento, ela deixara aberta a janela da frente. Sob comando do Jo\\xe3o Pedro, que era o nosso l\\xedder, levantamos o bicho, que era grande e pesava bastante, e com muito esfor\\xe7o n\\xf3s o levamos at\\xe9 a janela. Tentamos empurr\\xe1-lo para dentro, mas a\\xed os chifres ficaram presos na cortina.\\n\\n\\u2013 Vamos logo \\u2013 gritava o Jo\\xe3o Pedro \\u2013, antes que a bruxa apare\\xe7a. E ela apareceu. No momento exato em que, finalmente, consegu\\xedamos introduzir o bode pela janela, a porta se abriu e ali estava ela, a bruxa, empunhando um cabo de vassoura. Rindo, sa\\xedmos correndo. Eu, gordinho, era o \\xfaltimo.\\n\\nE ent\\xe3o aconteceu. De repente, enfiei o p\\xe9 num buraco e ca\\xed. De imediato senti uma dor terr\\xedvel na perna e n\\xe3o tive d\\xfavida: estava quebrada. Gemendo, tentei me levantar, mas n\\xe3o consegui. E a bruxa, caminhando com dificuldade, mas com o cabo de vassoura na m\\xe3o, aproximava-se. \\xc0quela altura a turma estava longe, ningu\\xe9m poderia me ajudar. E a mulher sem d\\xfavida descarregaria em mim sua f\\xfaria.\\n\\nEm um momento, ela estava junto a mim, transtornada de raiva. Mas a\\xed viu a minha perna, e instantaneamente mudou. Agachou-se junto a mim e come\\xe7ou a examin\\xe1-la com uma habilidade surpreendente.\\n\\n\\u2013 Est\\xe1 quebrada \\u2013 disse por fim. \\u2013 Mas podemos dar um jeito. N\\xe3o se preocupe, sei fazer isso. Fui enfermeira muitos anos, trabalhei em hospital. Confie em mim.\\n\\nDividiu o cabo de vassoura em tr\\xeas peda\\xe7os e com eles, e com seu cinto de pano, improvisou uma tala, imobilizando-me a perna. A dor diminuiu muito e, amparado nela, fui at\\xe9 minha casa. \\u2013 "Chame uma ambul\\xe2ncia", disse a mulher \\xe0 minha m\\xe3e. Sorriu.\\n\\nTudo ficou bem. Levaram-me para o hospital, o m\\xe9dico engessou minha perna e em poucas semanas eu estava recuperado. Desde ent\\xe3o, deixei de acreditar em bruxas. E tornei-me grande amigo de uma senhora que morava em minha rua, uma senhora muito boa que se chamava Ana Cust\\xf3dio.\\n\\nMoacyr Scliar'