Varíola dos macacos: "Não há razões para entrar em pânico"

Published: June 21, 2022, 3:51 p.m.

O vírus da varíola dos macacos continua a espalhar-se pelo mundo. A Organização Mundial da Saúde anunciou esta semana que já existem mais de 2 mil casos da doença em pelo menos 42 países mundiais. Em entrevista à RFI, Celso Cunha, professor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, explicou-nos o que já se sabe até ao momento sobre a doença. RFI: A Organização Mundial da Saúde (OMS) disse esta semana que o número de casos superou os 2 mil em 42 países fora do continente africano, onde a doença é endémica. Começo por perguntar-lhe porque é que só agora o vírus se está a espalhar pelo mundo, já que em África já circula há vários anos. Celso Cunha: Não penso que a OMS tenha uma resposta concreta e rigorosa acerca dessa questão porque nós não conhecemos ainda qual foi o contexto em que surgiu o primeiro caso e, portanto, é difícil estarmos a especular porque é que o vírus saiu de África e se está a espalhar por outras zonas, onde não é endémico. Neste momento, o que verificamos é que há surtos, em diferentes países, que têm diferentes origens, provavelmente. Em Portugal, nós temos uma concentração na comunidade de homens que fazem sexo com outros homens e isso também se passa na maior parte dos casos que têm sido escritos, fora de África, e isso pode levar a crer que o caso inicial tenha surgido dentro de alguma comunidade e esteja a ser espalhado devido a alguns comportamentos de risco que estejam a ser efectuados, neste momento, portanto, ou seja pessoas que, neste momento, estão infectadas e que, não estando elas próprias também muito alerta para os sintomas iniciais, estejam a contribuir para espalhar o vírus. Eu penso que é uma questão transitória nesta altura e que, em breve, iremos voltar a uma certa normalidade em relação a este assunto. RFI: A OMS vai discutir, ainda este mês, se deve ou não classificar a varíola dos macacos como "uma emergência de saúde pública de dimensão internacional". Se isto acontecer, o que é que muda daí para a frente? CC: Em termos de doença não muda nada. O que muda é em termos de medidas que poderão ser tomadas ou que poderão ser aconselhadas a ser tomadas pelos governos e autoridades locais. Neste momento, penso que ainda é cedo. Há cerca de 2 mil casos em todo o mundo. Em Portugal, cerca de 300 e em França também já existem dezenas de casos. Neste momento, sendo uma doença que tem um curso clínico relativamente benigno, comparado com a varíola normal, em que as taxas de mortalidade são relativamente baixas, não há, neste momento ainda, um perigo de se tornar uma grande pandemia, como foi a Covid-19. Esse perigo continua a não existir, neste momento, até porque, em relação à Covid-19, quando o vírus começou não tínhamos vacinas nem nenhum tratamento eficaz. Aqui, à partida, já temos vacinas, já temos alguns fármacos que são eficazes para tratar esta doença. Não é uma emergência, chamamos-lhe assim, como havia na Covid-19. Não há nenhuma razão para entrar em pânico, nesta altura.  RFI: Há o risco deste vírus sofrer mutações ou esse factor ainda não é claro? CC: Este vírus é um vírus em que o seu material genético está numa molécula diferente do que, por exemplo, o SARS-COV2, que causa a Covid-19. A Covid-19, como sabemos, é uma molécula que se designa por RNA. Neste caso, este vírus está numa molécula que é o DNA, semelhante à que nós temos dentro das nossas células. Quando esta molécula, o DNA, se multiplica, também ocorrem mutações, mas essas mutações são bastantes pequeninas para as corrigirmos. A taxa de mutação dos vírus DNA é muito inferior à dos vírus de RNA, como o caso do SARS-COV2, o HIV ou até o vírus da gripe, por exemplo. Neste caso, embora, por exemplo, o material genético deste vírus, a molécula onde estão os genes seja 6 vezes maior do que o SARS-Cov2, que causa a Covid-19, não é expectável que existam mutações muito relevantes, que surjam durante este surto, nos próximos tempos. Não é expectável que haja uma grande diferença no material genético e que possam surgir variantes ou estirpes, que sejam mais infecciosas ou que provoquem uma doença mais severa, com uma taxa de mortalidade mais elevada. Isso não é esperado em relação a este vírus. RFI: A forma de disseminação do vírus leva a crer que a doença aconteça por contacto muito próximo. Quais são as formas de transmissão mais comuns? CC: A transmissão dá-se através de contactos de grande proximidade entre uma pessoa que está infectada e uma pessoa que não está infectada. Esse contacto de proximidade tem de ser um contacto prolongado, em princípio, e a transmissão é feita através de gotículas respiratórias ou através do contacto com fluídos contaminados, ou seja, que contenham partículas virais de pessoas infectadas. Por exemplo, se nós tocarmos numa daquelas pequenas borbulhas, que têm vírus lá dentro, portanto, aquele líquido que surge nas pessoas que estão doentes, aí podem transmitir a doença. Esta doença transmite-se pela transmissão de fluídos corporais de pessoas infectadas, nomeadamente, através de gotículas respiratórias. Mas, uma outra diferença em relação à Covid-19 é que aqui, para uma pessoa ser infectada por alguém contaminado é necessário um contacto de proximidade mais prolongado, bastante mais prolongado. Nós não estamos pertante o risco de irmos, por exemplo, no autocarro, e estar uma pessoa infectada ao nosso lado e de apanhar a doença. É muito pouco provável que isso aconteça. Não é uma impossibilidade, mas é uma improbabilidade bastante elevada. O contacto dá-se, sobretudo, entre pessoas que coabitam, que ocupam os mesmos espaços durante muito tempo. RFI: Quais são os principais sintomas? Como é que se pode indentificar a doença? CC: Nos primeiros três dias, os sintomas são relativamente inespecíficos, ou seja, podem ser confundidos com outra doença viral, até com uma gripe porque os sintomas são febre, dores musculares ou dores de cabeça e, às vezes, uma pequena erupção que pode surgir um bocadinho depois já, mas os sinais iniciais são relativamente inespecíficos. O que diferencia esta doença, por exemplo, da varíola normal, a que estávamos habituados e que foi erradicada é que aqui os gânglios linfáticos têm tendência a aparecer bastante inchados. Isso é o que diferencia, sobretudo, esta varíola dos macacos da varíola clássica. Tirando isso, eu diria que os primeiros sintomas são inespecíficos e depois começam a aparecer as pequenas erupções cutâneas, que vão evoluindo e que começam por ser umas pequenas manchas, relativamente planas, e depois vão surgindo pequenas borbulhinhas que vão ficando com um líquido transparente e, numa fase mais tardia, com um líquido mais amarelo escuro. Depois, elas rebentam e tornam-se uma crosta. Depois quando caem, as pessoas são consideradas curadas. Todo este processo, desde a infecção até à cura, pode durar entre 2 a 4 semanas, aproximadamente. RFI: Até ao momento, só se têm registado formas leves da doença. Há risco de morte associado a este vírus? CC: Há sempre risco de morte, mas é muito baixo. O risco de morte na varíola dos macacos é substancialmente inferior ao da varíola clássica. Na varíola clássica, poderíamos ter taxas de mortalidade, muito acima dos 30% e aqui estamos a falar de cerca de 10 vezes menos, aproximadamente. Estes casos fatais ocorrem, infelizmente, apenas, sobretudo, em países com sistemas de saúde débeis porque nos países em que os sistemas de saúde são mais ricos, robustos e onde há melhores condições de tratamento, a taxa de mortalidade da varíola dos macacos aproximou-se bastante do 0 quase. RFI: Os casos registados em vários continentes afectam mais homens do que mulheres. Porque é que os homens têm um sistema imunitário menos resistente a este vírus? CC: Não estou de acordo com isso, ou seja, eu estou de acordo que afectam mais homens, são, sobretudo, homens, mas isso deve-se, segundo aquilo que sabemos, hoje em dia, ao facto do vírus ter começado a dissiminar-se dentro de uma comunidade de homens que faziam sexo com outros homens e não tem a ver propriamente com diferenças entre o sistema imunitário de homens e mulheres, mas sim com comportamentos e à respectiva transmissão, através dos comportamentos. RFI: O director-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, lamentou há poucos dias o facto de só se ter dado a devida atenção ao vírus quando este começou a afectar países ricos e desenvolvidos, uma vez que em África o vírus já circula há vários anos. Qual é o seu ponto de vista sobre o assunto? CC: O vírus circula em África há vários anos, é verdade. Ele foi identificado pela primeira vez em 1970, o primeiro caso humano. Nós sabemos que na África Central, ele é endémico, e que, periodiamente, surgem alguns surtos, mas estes têm sido muito limitados.  Apesar de, às vezes apareceram algumas dezenas, ou até mesmo centenas de casos, a doença tem vindo a concentrar-se naquela região. Isso tem a ver também com o facto de também nesses países, existirem reservatórios de animais porque este é um vírus zoonótico, ou seja, o vírus pode estar no reservatório dos animais e esses animais podem transmiti-lo ao Homem também. Esses reservatórios não existem nos países ocidentais em estado selvagem e, portanto, o risco de contaminação, através do contacto com animais não existia, pelo menos no Ocidente e em África existia, daí haver uma endemicidade nestas regiões. O que acontece aqui é que passamos de um vírus que estava circunscrito a uma região e com uma taxa de mortalidade que era cerca de 10/15%, mas isso mais relacionado com a debilidade dos sistemas de saúde, não pela gravidade da doença ser maior do que está a ser agora. Agora, o que está a acontecer de diferente é que o vírus se está a espalhar por todo o mundo e, em consequência disso, se estar a dar mais atenção. RFI: Para terminar e falando agora no caso concreto de Paris e de outras cidades europeias, o número de casos tem vindo a aumentar substancialmente. É preocupante, numa altura em que os contágios de Covid-19 estão também eles a aumentar? CC: É preocupante porque poderá ser um peso para os sistemas de saúde, embora a maior parte dos casos da varíola dos macacos que nós temos registados não obrigue a nenhuma hospitalização e possam ser tratados em ambulatório, através do isolamento das pessoas em casa e à restrição de contactos. Apesar de tudo, não é prevísivel que esta doença venha a ter um peso significativo nos sistemas de saúde. Poderá ter um peso económico devido à abstenção de trabalho porque as pessoas vão faltar ao trabalho e estar de 2 a 4 semanas, em casa. Se o vírus se espalhar muito poderá existir algum peso económico, mas para os sistemas de saúde não penso que vá existir uma pressão tão grave como aconteceu com a Covid-19 porque não vai obrigar a internamentos em tão grande número. Para os sistemas de saúde, em princípio, não vai ser um grande problema.