Alterações climáticas agravam ondas de calor

Published: July 26, 2022, 4:27 p.m.

O Relatório do Centro de Investigação Comum da União Europeia publicado recentemente diz que as ondas de calor responsáveis pela seca em várias regiões do mundo podem causar uma diminuição das colheitas. Marta Leandro, vice-presidente da Quercus, em Portugal, refere que este cenário se deve às alterações climáticas e alerta que "se nada for feito, podemos vir a ter cenários de fome em geografias inusitadas". RFI: Como se explicam estas ondas de calor que estão a atingir várias regiões do mundo? Marta Leandro: Todo este cenário de ondas de calor e de falta de precipitação, que está a atingir o país e várias regiões do mundo, está associado ao facto de vivermos uma situação de alterações climáticas, com efeitos já muito visíveis. A montante da alteração climática está a dependência dos combustíveis fósseis que estão a causar todos estes fenómenos, cada vez mais frequentes e extremos. Precisamos de apostar nas energias renováveis para que o recurso ao carvão, ao gás fóssil e ao petróleo seja dissociado no futuro, se possível já no presente. É óbvio que não podemos fazer uma transição brusca, temos de nos adaptar, mas é muito importante que as pessoas percebam que se continuarmos a utilizar as fontes de energia fóssil, de forma massiva, vamos estar a contribuir para o aumento destes fenómenos. A falta de precipitação terá também um impacto nas colheitas? Se nada for feito, podemos vir a ter cenários de fome em geografias inusitadas. Em Portugal, vemos que até as espécies autóctones, os sobreiros, as quercíneas e os carvalhos dão sinais de estarem afectados por esta situação de stress hídrico. A Direcção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural da Comissão Europeia estima que em 2022 a produção de cereais será 2,5% mais baixa do que em 2021... Tudo isto já está a ter consequências na nossa segurança alimentar. Portugal é um país que importa dois terços dos alimentos que consome. É importante que a questão da segurança alimentar seja encarada de uma forma mais resoluta e com a urgência que se coloca. Não faz sentido estarmos a promover cadeias de média e longa distância na distribuição, uma vez que essas cadeias têm um impacto no aumento da temperatura global. O racionamento da água pode ser uma das soluções? Precisamos reduzir os nossos consumos, mas o principal consumo de água está ligado à agricultura e às enormes perdas que existem na exploração de regadio, sobretudo nas mais antigas. Em vez de fazermos tanto regadio, recordo que está prevista a construção da barragem do Pisão, que para além da brutal destruição da paisagem e do habitat que temos no Alentejo norte, vai replicar um sistema de agricultura intensiva, altamente agressiva para o solo. Estamos, no fundo, a insistir num modelo de regadio em detrimento das culturas tradicionais de sequeiro, muito mais adaptadas às condições climáticas e às condições do solo que temos, num país que é um dos mais vulneráveis do mundo, toda a região mediterrânica é vulnerável, às alterações climáticas. Precisamos de apostar numa agricultura mais amiga do ambiente, que contamine menos os aquíferos- as grandes massas de água subterrâneas- também com fortes perdas, uma vez que não há chuvas suficientes que permitam a recarga natural [do solo]. Até porque quando há períodos de precipitação, nesta altura do ano, já não chegam a tempo para fazer a recarga dos solos…. O próprio solo, sobretudo a sul do Tejo, está desertificado. O que é que significa a desertificação do solo? É um processo químico e físico em que o solo vai perdendo nutrientes, a sua capacidade produtiva e a capacidade de reter água. Esta agricultura que dilapida os recursos naturais e a biodiversidade é agressiva para o solo que perde a capacidade de reter água. Em Portugal, por exemplo, a energia hidroeléctrica armazenada nos reservatórios de água está a cerca de metade, obrigando a uma imposição de restrições de consumo e suspensões de produção de electricidade?   Nós temos, neste momento, responsáveis da Agência Portuguesa do Ambiente que reconhecem que a construção de novas barragens, quando não há água, não faz sentido. O que faz sentido é construir pequenos reservatórios, diques de pequena e média dimensão, nos sítios onde há maior pluviosidade ao longo do ano.  São importantes os hábitos individuais, apesar de o consumo das famílias ser muito menor do que o consumo industrial, em particular o consumo agrícola. Precisamos de soluções mais estruturais, aproveitar as chamadas águas cinzentas e utilizá-las para determinado tipo de lavagens, regas e até nos autoclismos das residências. Temos de aprender a gerir, mesmo a nível doméstico, os nossos recursos hídricos de uma forma muito mais eficiente.  Se nada for feito os habitantes desta parte da Europa, afectada pela seca extrema, correm o risco de se tornarem refugiados climáticos?  Em Portugal, estudos indicam que o território nacional a sul do Tejo poderá, até ao final do século, tornar-se num deserto. Eu acho que esse risco existe, se de facto não forem adoptadas medidas. É muito importante que até ao final desta década se perceba que mitigar as alterações climáticas é fundamental. Vemos com muita preocupação o facto da União Europeia- a guerra na Ucrânia não ajudou- a Comissão e o Parlamento Europeu terem adoptado uma classificação de energias sustentáveis para o gás e energia nuclear. A nível político há aqui sinais díspares que não vão ajudar a resolver esta questão que se coloca em Portugal de uma forma acutilante.